segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves

 Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves




Ibêjis, irmãos ou irmãs gêmeos. Assim são Kehinde e Taiwo, duas meninas de um lugarejo chamado Suvalu, no reino de Daomé, atual Benin, África, no início do século XIX, quando assistem ao estupro e assassínio da mãe e de seu irmão menor. Juntamente com sua avó, fogem para a localidade de Uidá, onde são capturadas e enviadas como escravas para o Brasil. Na viagem, a avó e a irmã morrem. Kehinde desembarca na Bahia, na Ilha de Itaparica, onde será companheira da sinhazinha, filha do dono da fazenda, mais ou menos da mesma idade que ela. Quando a menina branca ganha um preceptor para ensinar-lhe as primeiras letras, Kehinde consegue se aproximar e aprende também a ler. Será o que lhe dará o diferencial para uma trajetória complexa, mas exitosa em muitos pontos porque, ao fugir da ilha, depois de dar à luz um menino gerado de um estupro pelo dono da fazenda, conseguirá na cidade de São Salvador obter ajuda e, embora escrava, sobreviver para mais tarde comprar sua liberdade, participar das revoltas dos negros muçulmanos contra a escravidão, perder o primeiro filho, Banjokô, que era um abiku, criança destinada a morrer, ter um segundo filho que é vendido pelo pai e levado para o sul, enriquecer com seu trabalho, voltar à África, onde adota o nome de branca, Luiza, até o retorno ao Brasil, para morrer. Seu périplo antes do retorno à África, na busca inútil do filho perdido, leva-a a São Sebastião (Rio de Janeiro), São Paulo, Santos, Campinas, além de outras viagens que ela faz pelo país. A história dessa negra escravizada e empreendedora é uma longa e detalhada narrativa contada em primeira pessoa, enriquecida pelos usos e costumes da época e pela extraordinária mitologia das religiões africanas. Há uma quase certeza de que essa Kehinde/Luiza tenha sido a mãe de um grande abolicionista, um advogado notável da cidade de São Paulo, que conseguiu libertar muitos escravos com seu trabalho, esse o seu filho perdido. O mais notável de todo o livro foi a forma como a autora descobriu os escritos dessa mulher: na ilha de Itaparica, para onde ela se mudou, para buscar tempo e sossego para escrever sobre a revolta dos malês, encontrou uma garota numa igreja, que lhe serviu de guia. Dessa menina, a pesquisadora tirou inúmeras fotografias e prometeu voltar um dia para lhe presentear com as fotos. Ao encontrar a casa da garota algum tempo depois, o irmãozinho dela lhe mostrou alguns desenhos que ele fazia em folhas de papel antigas, no verso das quais havia uma escrita estranha, e encontrou um maço desses papéis servindo de apoio à mesa de centro da sala. Ganhou os papéis e deslindou a história de Kehinde, misturando realidade e ficção em sua narrativa, para nos fornecer uma das mais belas, tocantes, minuciosas histórias da vida dos escravizados no século XIX, com toda a cultura da época, os usos e costumes, a política e as revoltas, as crenças, a culinária, as moradias, tanto no Brasil como na África. Sem dúvida que, apesar de suas mais 950 páginas, é um livro que se lê com o prazer das narrativas que nos prendem da primeira à última página, um oceano de informações, peripécias, dores e alegrias, festas e perigos, e que terminam deixando em nós um gosto de “quero mais”.

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