A virada – o nascimento do mundo moderno, Stephen Greenblatt
Quem gosta de livros gosta de ler livros que narram histórias de livros. E este é um livro que conta a história da descoberta de um dos livros mais emblemáticos da cultura greco-romana. O poema de Lucrécio – DA NATUREZA – estava perdido desde que fora escrito no primeiro século antes de nossa era, quando um secretário do papa João XXIII – o papa corrupto, cujo nome foi proscrito dos anais da Igreja Católica – Poggio Bracciolini resgatou das prateleiras de um monastério essa obra-prima, em 1417. Poggio era um caçador de textos antigos, apaixonado pelo mundo perdido da Grécia e de Roma. Seu interesse era meramente arqueológico e não teve noção clara do que representava o longo e complexo poema de Lucrécio, quando o encontrou e o divulgou, através de várias cópias. O mundo nunca mais seria o mesmo. Baseado nas ideias do filósofo grego Epicuro, o poeta romano defende que tudo o que é existe é fruto de algo que ele chama de virada, um desvio que tira as coisas da sua trajetória natural, para criar o novo, numa colisão aleatória das “sementes da vida”, os átomos, a única coisa eterna no mundo. E mais: que os deuses não têm nenhuma influência na vida dos homens, cujo medo religioso da morte – que é o fim de tudo – deve ser mitigado pela busca do prazer, não exatamente o prazer sensual, mas o prazer de viver. Prazer e virtude não são opostos, mas interligados. O universo – que não teve um criador – consiste de matéria — as partículas primárias e tudo que essas partículas se reúnem para formar — e de espaço, intangível e vazio. Nada mais existe. O universo experimenta sempre e as adaptações bem-sucedidas, como os fracassos, são resultado de um número fantástico de combinações que estão sendo constantemente geradas (e reproduzidas e descartadas) durante um intervalo de tempo ilimitado. Enfim, muitas outras ideias são desenvolvidas de forma poética e metafórica, com uma construção formal e filosófica impressionantemente moderna, o que justifica terem os escolásticos católicos escondido esse livro durante tanto tempo. A história de sua descoberta e das consequências de suas ideias no pensamento de muitos autores do renascimento encontra na prosa de Stephen Greenblatt uma narrativa de tirar no fôlego, porque adquirimos a certeza de que o que chamamos hoje de modernidade já estava ali, naquele poema espetacular, longo, complexo, que redime o pensamento de um filósofo, Epicuro, que sofreu talvez a primeira fake news da história, ao ter suas ideias relacionadas a um hedonismo que ele nunca viveu e nunca pregou. Para ler com o prazer das grandes descobertas e com o gozo do descortino de um momento da história da humanidade tão rico e prolixo quanto foram os séculos XV e XVI, quando nasce o mundo que hoje desfrutamos e em que vivemos, ainda pleno de negacionismos e ideias retrógradas, as mesmas que impediram que um livro como “De rerum natura” ficasse oculto aos olhos da humanidade por tanto tempo.
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