domingo, 28 de maio de 2023

A Conversa de Bolzano, Sándor Márai

A Conversa de Bolzano, Sándor Márai


Giacomo. Apenas Giacomo. É como o escritor húngaro Sándor Márai nomeia seu personagem durante toda a narrativa. Mas logo sabemos tratar-se dele mesmo, de Giacomo Casanova. O mais famoso conquistador de todos os tempos consegue escapar de uma prisão veneziana, em 1756, juntamente com seu companheiro de prisão, o abade Balbi. Passara 16 meses numa cela onde mal conseguia se erguer. Na sua escapada para outros países, passa oito dias na pequena cidade de Bolzano, no norte da Itália, onde mora o envelhecido, mas ainda temível, duque de Parma que, anos antes o havia derrotado num duelo por causa de uma dama chamada Francesca. O duque poupara a vida de Giacomo com a condição de que ele não voltasse a vê-la nunca mais. Agora, casado com Francesca, conseguiu interceptar uma carta da esposa para o antigo rival. Nela, apenas três palavras: “Quero ver-te” e a assinatura “F”. Em torno dessas três palavras,teremos as duas longas “conversas” que vão se constituir no cerne da obra. Em vez de matar o antigo rival, o duque visita-o numa noite e faz-lhe uma surpreendente proposta, após um longo monólogo, uma conversa que revela mais sobre a índole de Giacomo do que as dúvidas do velho duque. E a personagem ganhará ainda mais humanização, quando a própria Francesca surge, de repente, no seu quarto, mais tarde, vestida de homem, enquanto o conquistador se preparava para ir à festa à fantasia na casa do duque, para encontrá-la, supreendentemente vestido de mulher. Mais um longo monólogo, agora da sua ex-amante e ainda apaixonada Francesca, mais uma conversa extraordinária que revela cada vez mais, na visão do escritor húngaro, quem é Giacomo Casanova, numa narrativa longa, lenta e meticulosa, um mergulho ficcional no íntimo da personagem, a nos revelar desejos e lampejos de paixão, morte e desejo. Um livro extraordinário, sem dúvida, para leitores que apreciam o que de melhor a literatura do século XX nos ofereceu.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Esqueleto na Lagoa Verde, Antonio Callado

 Esqueleto na Lagoa Verde, Antonio Callado


O coronel britânico Percy Harrison Fawcett, desde criança, tinha a vocação de buscar tesouros perdidos. Viajou por vários países. Deve haver chegado às suas mãos um manuscrito de 1753, em que um autor anônimo descreve a existência de uma cidade abandonada no interior da Bahia. Em 1925, com mais dois amigos, enceta uma viagem pelo interior do Brasil, aparentemente em busca dessa cidade, embora o sertanista Orlando Villas Boas, muitos anos depois, tivesse a opinião de que ele buscava minas de ouro. Fawcett era arrogante e de trato difícil. Irritou seus guias índios, que o mataram e enterraram na floresta. O sumiço do explorador repercutiu na imprensa nacional e internacional e, principalmente, interessou a Assis Chateaubriand que acabara de iniciar sua carreira jornalística frente aos Diários Associados. Carregou o cadáver do inglês por muitos meses, em seu jornal, durante as buscas infrutíferas por seu corpo. Já em 1952, ficou-se sabendo que alguns índios kalapalos teriam encontrado os restos mortais de Fawcett. Chateaubriand, então, patrocinou uma viagem ao local, com vários jornalistas e mais o filho de Fawcett, Brian Fawcett, o sertanista Orlando Villas Boas e o jornalista Antonio Callado (que não trabalhava para Chateaubriand) e outros jornalistas e fotógrafos. Chegaram ao local, às margens de uma lagoa, onde presumivelmente se encontrava a cova com os ossos do coronel desaparecido. Depois se comprovou, após exames de especialistas do Brasil e da Inglaterra, que os restos mortais não eram de Fawcett. O relato dessa expedição, no livro Esqueleto na Lagoa Verde, se constitui num exemplo de jornalismo, uma reportagem extraordinária, em que Callado busca entender a obsessão do explorador e descreve em pormenores toda a trajetória da expedição e traça um perfil muito interessante de Fawcett. O livro traz, ainda, dois apêndices e dois posfácios. O primeiro apêndice nos brinda com o relato de 1753, na grafia original e com todas as lacunas ocasionadas no manuscrito pelo trabalho das traças, sobre a tal cidade perdida. Um exemplo de imaginação a serviço da mistificação que levou muitos a pensar na existência de uma Atlântida brasileira. O segundo apêndice traz as anotações ipsis litteris do diário de viagem que deram origem ao livro. Muito interessantes. Já os posfácios apresentam-nos dois estudos, o primeiro sobre o sumiço de Fawcett, de Davi Arrigucci Jr.; e o segundo, de Mauricio Stycer, sobre os aspectos jornalísticos do livro de Callado. Enfim, Esqueleto na Lagoa Verde apresenta-nos uma história real travestida de mistérios do Brasil profundo, já que o sumiço do explorador inglês nunca foi esclarecido. Mas, a viagem de Callado ao sertão brasileiro e seu contato, naquele momento e em outras viagens posteriores, deram-nos uma obra prima, o livro Quarup.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Por que você dança quando anda?, Abdourahman A. Waberl


Por que você dança quando anda?, Abdourahman A. Waberl


Ao buscar sua filha de oito anos na escola, em Paris, um dia a menina pergunta, ante seu andar “estranho”: “Pai, por que você dança quando anda”? O narrador, para justificar seu modo de caminhar, leva a filha e a nós, leitores, a uma viagem surpreendente por sua origem e sua vida no Djibuti. Sim, estamos falando de um autor nascido na cidade de Djibuti, capital do país de mesmo nome, um pequeno país situado no chamado Chifre da África. Lemos, então, uma narrativa que, se não tem novidades em termos de dificuldades de vida, apresenta-nos um retrato bastante interessante de uma região praticamente ignorada pelo demais países do planeta, exceto pela França, que ocupou seu território e transformou o Djibuti em sua colônia, o que justifica ao narrador o domínio do francês, ao lado da língua nativa. A história de sua infância complicada, quando uma doença que poderia ter sido evitada por uma tríplice vacina quase inutilizou uma de suas pernas e provocou ao garoto de sete anos muito aquilo que hoje chamaríamos de bullying, por parte de garotos mais fortes e violentos. A mãe, desde quando ele nasceu, pouco cuidou dele e depois se preocupou mais com seus dois irmãos menores, uma menina e um menino, enquanto o pai ausente trabalhava duro para sustentar a família. A referência mais profunda do garoto era a avó paterna. Acompanhamos seu esforço para estudar, sua vocação para a leitura e, finalmente, sua ida para a Europa, a constituição de uma família e, agora, o amor à filha. Como disse, uma trajetória típica de jovens pobres da periferia de todos os países do mundo que obtiveram algum sucesso a partir de esforços inauditos para suplantar a situação de marginalização. Repito sempre Machado de Assis: “Ao cabo, só existem ideias velhas caiadas de novo”. Se a história, o enredo, não têm novidades, deixemos que fale a emoção do autor, o seu estilo, o seu modo de encarar a vida e suas adversidades, e teremos sempre o prazer renovado de colecionar mais uma história de vida de mais um lugar pouco conhecido. E a literatura africana é, sim, uma literatura de grande potência, que precisamos urgentemente desbravar. Temos uma dívida imensa para o imenso, rico e fantástico continente africano, não só em termos sociais e econômicos, mas também artísticos: a África, com que os europeus têm mais proximidade, precisa atravessar o Atlântico com essa sua enorme cultura, já que somos um país preto, embora neguemos isso e ainda sejamos estupidamente racistas.

sábado, 13 de maio de 2023

A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário, Noemi Jaffe

A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário, 

Noemi Jaffe


Um convite à fantasia, ao lúdico, à criatividade. Os textos de Noemi Jaffe são pequenos contos de fadas – para adultos. Aceite-se a regra do jogo. E sonhemos com ela, através da “verdadeira” história das letras, ou de como surgiram as letras do alfabeto da imaginação de vários personagens – históricos e devidamente ficcionados ou inventados. Creio já ter dito algures que a ficção nos leva para uma espécie de supra realidade que nos permite interpretar a nossa própria realidade e nos leva para caminhos de sonhos e fantasias pelos quais adquirimos um pouco mais de conhecimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Desde que aceitemos as regras desse mundo criado e devidamente construído pela imaginação dos escritores e poetas. Os breves contos da história do alfabeto são joias de invenção e magia e com eles nos divertimos, como nos divertimos com mundos imaginários de inúmeros outros autores, desde tempos imemoriais. Isso é literatura. Literatura da melhor qualidade. Como é impossível resenhar ou resumir todas as diferentes pequenas crônicas ou pequenos contos desse livro, e como não quero aprofundar em análises literárias, que fogem ambos ao escopo dos comentários que aqui faço sobre livros, deixo aqui apenas a minha impressão de ter lido com imenso prazer essa deliciosa experiência de imaginar junto com a autora como se criaram as letras do alfabeto, de A a Z. E, claro, a recomendação para qualquer eventual leitor dessas linhas para que, se puder, não deixe de ler também essa pequena obra prima de nossa literatura.

terça-feira, 9 de maio de 2023

O turno da noite – memórias de um ex-repórter de polícia, Aguinaldo Silva

 O turno da noite – memórias de um ex-repórter de polícia, Aguinaldo Silva


Quando li, no início da década de 70, o livro “Cristo Partido ao Meio”, saudei-o como uma grande revelação da literatura brasileira. O romancista que ali se mostrava como promissor, no entanto seguiu por outros caminhos que lhe deram fama e, com certeza, muito dinheiro. E críticas – favoráveis e desfavoráveis. Agora, tantos anos depois volto a ler Aguinaldo Silva. Não um novo romance, mas um livro de memórias. Dividido em duas partes, narra o autor, na primeira, o começo de sua carreira de escritor jovem em Recife, o encontro com figuras notáveis da nossa literatura (que publicaram seu primeiro romance), os primeiros empregos e experiências como jornalista, sua vinda para o Rio de Janeiro, onde se empregou em vários jornais, exercendo atividades de copidesque e depois a de plantonista de reportagens policiais. Na segunda parte, estão publicados alguns de seus textos sobre casos notáveis da crônica policial carioca, principalmente. Não há nenhuma pretensão literária nestes relatos, tanto os biográficos quanto os textos publicados nos jornais da época, mas apenas um registro histórico do início de sua carreira e as reportagens que marcaram um tempo de muita violência policial, no Rio de Janeiro, nas décadas de 60 e 70. Ressurgem figuras como Mariel Mariscot, um misto de policial e bandido, mais bandido do que policial, e crimes famosos como “o crime do Sacopã” ou da menina Araceli. E também perfis, como o famoso, e hoje quase esquecido, colunista social Ibrahim Sued. O Rio de Janeiro da época retratada por Aguinaldo Silva era lindo e violento – continua lindo e cada vez mais violento. Então, com certeza um livro para ser lido como uma crônica de época, necessário talvez para entendermos um pouco mais o nosso tempo e pensarmos por que motivo a Cidade Maravilhosa não consegue escapar ao seu ciclo vicioso de criminalidade e por que somos, nós, os humanos, tão violentos.


quinta-feira, 4 de maio de 2023

O mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov

O mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov


Dois escritores conversam numa esquina qualquer de Moscou, na primeira metade do século XX, quando entram no papo dois indivíduos muito estranhos. Um deles faz uma profecia trágica, que se cumpre com a morte acidental e a decapitação de um desses escritores. O outro persegue pelas ruas de Moscou o indivíduo estranho, mais estranho ainda porque acompanhado da figura de um gato enorme, que age como gente. Não consegue capturá-lo, claro, e vai parar num asilo de loucos. Paremos por aqui, porque é praticamente impossível resumir o enredo dessa história mirabolante: estamos diante do demônio, que visita Moscou, e vai provocar eventos absurdos e complicados. A literatura latino-americana tem no realismo fantástico ou realismo mágico um de seus pilares, no século XX. A cultura europeia tem a tradição do fantasioso, da criação de mundos imaginários e fantásticos, para os quais nos convidam a viagens incríveis (vide “Alice no país das maravilhas”, um exemplo entre centenas). Quando adentramos esse mundo e aceitamos suas regras, a diversão é garantida. Além, é claro, de muitas outras lições ou de vida ou de filosofia ou de crítica social etc. É o que acontece com essa longa e complexa narrativa de Bulgákov: em pleno regime stalinista, o diabo visita Moscou e faz uma série de estrepolias que nos divertem e das quais podemos tirar as lições que quisermos, desde a crítica ao regime até a crítica social, sem dúvida uma das vertentes da obra, escrita e maturada durante muitos anos pelo autor, na década de 30. Seguiremos com prazer e muito divertimento o rastro de destruição e loucura que tomará as ruas e as instituições moscovitas com essa fantasia cômica. Nada será como antes, naquela cidade, depois da passagem do demônio e sua trupe travestida de mágicos estrangeiros, a perturbar a mente e a vida das pessoas, principalmente os poetas, os editores, os burocratas. Uma bela e estranhíssima – como tudo, aliás, é estranho nesse estranho livro – história de amor entre uma personagem denominada apenas como mestre e uma burguesa chamada Margarida, que se transforma em bruxa e voa pelos céus de Moscou, conclui a narrativa brilhante e divertida desse autor ucraniano, na época ainda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.