domingo, 20 de agosto de 2023

A promessa, Damon Galgut

A promessa, Damon Galgut


Pretoria, África do Sul, final dos anos oitenta. Numa fazenda dessa cidade, Amor, uma criança de seis ou sete anos, ouve sua mãe, Rachel Swart, em seu leito de morte, pedir ao marido que prometa transferir à empregada negra Salome a posse da casa onde ela mora. Essa a promessa que vai acompanhar a saga da família Swart ao longo de toda a história dessa família branca, num país complexo e de mudanças radicais. E essas mudanças políticas e sociais são o pano de fundo de um drama pungente, em que a persistência e a resiliência de uma garota acompanha a decadência da propriedade, a morte de seu pai, depois a morte de sua irmã do meio, Astrid, e de seu irmão mais velho, Anton. O livro fala, de forma indireta, não só de uma nação que busca se reconstruir, depois de tantos traumas e de um regime segregacionista cruel e desumano, mas principalmente de relações familiares que se desgastam com o tempo, o que leva ao isolamento dos seus membros, a uma trajetória de frustrações de cada um deles, e, finalmente, à decadência das propriedades familiares e sua consequente bancarrota. Narrado num estilo vertiginoso, em que o leitor mal tem tempo para respirar, apesar de suas quase 400 páginas, é um livro que se lê com a atenção e o prazer das grandes obras literárias do século XX. Um narrador onisciente pula da narrativa de vida de uma personagem para outra sem que quase nos demos tempo de perceber que outra e outra trajetória de vida está sendo narrada – e são muitas, e interessantes, a personagens que aparecem a cada capítulo - , sem, no entanto, comprometer a estrutura literária, nesse mosaico de enredos impactantes, sempre, o que faz que a aventura de lê-lo se transforme num prazer, às vezes mórbido, pelas tantas mortes do livro, mas, sem dúvida, uma aventura extremamente prazerosa pela riqueza dos dramas desenvolvidos. Os eventos da política e da sociedade da África do Sul entrecortam a narrativa de uma forma quase sutil, a pontuar as três décadas de vida da família Swart, sem qualquer panfletarismo, marcando para o leitor a existência dos grandes problemas do país como a história que marcou um povo e cujo passado não tem volta, mas, quando a agora quarentona mulher que se chama Amor volta à sua terra, à casa de seus pais, e sobe no telhado, imitando um gesto de seu irmão, para espalhar suas cinzas, sabemos que ela nos dá um olhar também sutil, mas muito claro, de que um futuro melhor pode ser construído.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

A borra do café, Mario Benedetti

A borra do café, Mario Benedetti


A Montevidéu lírica e provinciana das décadas de 30 e 40 serve de cenário para a infância e adolescência de Claudio e suas surpresas e dificuldades para crescer, amadurecer e se tornar adulto. Um tema, portanto, absolutamente comum. Talvez milhares de narrativas abordem esse processo, e muitas, realmente muitas, são lidas com o prazer de “uma história velha caiada de novo” graças à perícia do autor. Independente de juízos estéticos, eu tenho para mim que toda vida humana é única e sua trajetória merecia ser contada. Como isso é praticamente impossível, contentamo-nos com narrativas como a do escritor uruguaio, Mario Benedetti, que nos encantam e enternecem por terem a capacidade de nos levar, mais uma vez, pelos meandros da quase sempre complexa transformação da criança em adulto, em circunstâncias muitas vezes semelhantes, mas nunca exatamente iguais, porque, repito, cada vida é única, e tem matizes e detalhes que podem nos enriquecer, ao lermos sua trajetória. São pequenos acontecimentos da vida diária, o que nos fornece o autor desse semiautobiográfico romance: as brincadeiras de rua com os amigos, as constantes mudanças de bairro da família, a visão do zepelin, a morte precoce da mãe, a descoberta do amor, o primeiro beijo, a aparição consoladora de uma garota num momento de dor, cuja lembrança ele vai levar para o resto da vida, o novo emprego do pai e seu novo casamento, a relação com a divertida empregada húngara, com seu espanhol arrevesado, o primeiro emprego, a descoberta da vocação de pintor e a maturidade no sexo e no amor. Lugares comuns? Seriam, se não fosse o lirismo e a perícia do autor em nos conduzir pelas páginas de seu livro com mestria e nos fazer sonhar, sofrer e viver a vida não só do protagonista, mas de todas as demais personagens desse delicioso relato, pelas ruas e praças de Montevidéu, na década de 30 do século passado e, depois, pela trágica década de 40, um pano de fundo de grande repercussão na vida de todos nós, quando a crueldade do nazismo e, depois, o espanto, a destruição e a dor provocada pelas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, a inaugurar um novo período de incertezas.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Um homem só, Christopher Isherwood

Um homem só, Christopher Isherwood


Anos 60, nos Estados Unidos. Crise dos mísseis de Cuba. Esse pano de fundo aparece de forma bastante sutil na narrativa de um dia na vida de George, professor de literatura de uma universidade californiana. George tem 58 anos, é inglês, adotou a cidadania americana e tem com seus alunos uma relação franca e ao mesmo tempo reservada, assim como com toda a sociedade em torno de sua residência. Acompanhamos seu despertar, sua ida para o campus e uma de suas aulas. Depois, a conversa com um de seus alunos na livraria, as compras no supermercado e a confirmação do jantar na casa de uma amiga e vizinha, rotina semanal. Conversam, jantam e bebem. Muito. Sai de lá meio bêbado e resolve passar num pub/bar na praia, perto de sua casa, onde reencontra o aluno com quem conversara na livraria. Bebem. Tomam banho de mar e vão para a casa dele. Praticamente nada acontece de excepcional. Durante essas 24 horas, um narrador onisciente revela-nos a vida e as dores de George: tem para com a sociedade um certo olhar pessimista, de tristeza, porque há pouco perdeu o amor de sua vida, num desastre, um jovem parceiro de todas as horas e, por isso, ele, um homem só e absolutamente triste, não sabe como lidar com a solidão, mesmo em companhia de outras pessoas. Os corpos masculinos, de alunos principalmente, chamam sua atenção, contudo o dilaceramento provocado pela perda do parceiro faz que essa beleza, que podia aquecer sua solidão, seja inútil e inibe a possibilidade de uma nova realização amorosa. Esse romance, relatado de uma forma um tanto fria e dura, mais um relatório do que um relato, da vida de um homem gay, na sua maturidade, chocou a muitos na época de seu lançamento. Mas, apesar de sua frieza, é um retrato pungente, esplendidamente elaborado, de uma época em que a homossexualidade ainda precisava de subterfúgios para ser exercida; e, acima de tudo, uma narrativa comovente sobre o amor e a infelicidade de envelhecer na solidão. De acordo com João Silvério Trevisan, que assina a apresentação do livro, “um dos primeiros e melhores romances da literatura gay moderna”. Para finalizar, uma informação ao leitor destas linhas: Christopher Isherwood foi o autor do livro Goodbye to Berlin que inspirou a peça I Am a Camera, de John Van Druten, por sua vez inspiração para o filme Cabaret, de Bob Fosse, com Liza Minelli.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

A fúria e outros contos, Silvina Ocampo

A fúria e outros contos, Silvina Ocampo


Os contos são curtos, algumas páginas apenas, mas densos, muito densos. E mais do que densos, estranhos. A autora nos oferece, em cada conto, em frases mais ou menos curtas, pedaços de informação que aos poucos vão fazendo sentido, à medida que as personagens se delineiam. Aliás, é difícil falar em personagens nos contos de Silvina Ocampo: talvez fosse mais certo falar em seres. Seres que se debatem entre a “inocência” (com todas as aspas possíveis, já que muitos desses seres são crianças) e a crueldade, num universo a que somos convidados a entrar, em cada história, com algum tipo de horror, ainda que um horror construído com elegância e, às vezes, algum excesso. Podíamos pensar que se trata de algo parecido com o “realismo mágico”, mas não há magia, apenas a maldade humana descrita de forma alucinada e surpreendente, nas histórias que nos levam para cenários nem sempre muito claros dos subúrbios de Buenos Aires ou de longínquas províncias da Argentina. Ressalte-se ainda a melodramaticidade de cada conto, entendendo o melodrama como (conforme lição de mestre Chico de Assis) “a inversão do fluxo dramático da plateia para o palco”, no caso, dos enredos dramáticos dos contos para a imaginação do leitor, já que quase sempre eles não apresentam um desfecho, deixando ao leitor a tarefa de complementar a história; ou ainda, deixando vácuos sintagmáticos, ou seja, vazios no enredo, pequenos saltos na história, que o leitor preenche com sua imaginação. Sem dúvida, um exercício de leitura que se transforma numa experiência literária radical, para leitores mais sensíveis. Cabe destacar que a autora, que foi esposa de Bioy Casares, o mais íntimo amigo e parceiro literário de Jorge Luis Borges, forma com eles um time de primeira linha da literatura argentina, quiçá da literatura hispano-americana.

sábado, 5 de agosto de 2023

O deus das pequenas coisas, Arundhati Roy

 O deus das pequenas coisas, Arundhati Roy


A Índia é um país complexo, com suas religiões, sua sociedade dividida em castas, seus usos e costumes, sua política. Isso todo mundo sabe. Para retratar a vida de personagens complexos num tal ambiente é necessário fôlego e muito talento. E isso não falta à escritora Arundhati Roy, em seu romance de estreia. Narrada numa linguagem poética, mas às vezes poeticamente crua, espantosamente realista, a saga dos irmãos gêmeos, a garota Rahel e o garoto Estha, ganha cores de tragédia, na Índia de 1969. Há um elemento mágico que percorre toda a história, entre outros: o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um avô distante, que era entomologista imperial, quando o país era ainda possessão inglesa. O contexto histórico, político e social é um pano de fundo mais ou menos tênue, mas poderoso nas entrelinhas da vida desses gêmeos. Eles crescem entre os caldeirões de geleia da fábrica da avó quase cega. A família é disfuncional: a mãe é a solitária e livre Ammu, que um dia se entrega a um intocável, o que desencadeia um dos fatos mais terríveis do romance, embora suas consequências sejam percebidas aos poucos, na leitura; o tio Chacko casou-se com uma inglesa e com ela tem uma filha. Separado da mulher, que se une a outro homem, volta para a Índia e cultiva sua obesidade na amargura da distância da filha. Quando o companheiro de sua ex-mulher morre num acidente, ela aceita o convite para vir à Índia com a filha e esse é um fato que irá desencadear a grande tragédia da vida de toda a família. Há ainda a intragável e vingativa Baby Kochamma, estopim de muitas violências, físicas e psicológicas. Há momentos memoráveis de beleza e dor, de materialização, mesmo que numa linguagem poética, de toda a maldade de que é capaz o ser humano, em passagens que lemos com a respiração suspensa. E os gêmeos crescem e vivem tudo isso, sendo até mesmo culpabilizados pelos acontecimentos nefastos, o que leva a que a família os separe por longos anos e eles só voltam a se reencontrar muitos anos depois, já adultos. A história é complexa, cheia de altos e baixos, de suspense, de amor, de separações e reencontros, mas que se lê desde o primeiro capítulo com o prazer de estar diante de uma grande escritora e de um grande livro, que nos desvenda um pouquinho da complexidade desse país, hoje o mais populoso do mundo, chamado Índia.