quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O olho mais azul, Toni Morrison

 

O olho mais azul, Toni Morrison


O belo está no olho de quem o vê, e não no objeto contemplado. No entanto, as sociedades humanas tendem a estabelecer padrões de beleza principalmente para as pessoas, num autoritarismo funesto e excludente, causando sérios transtornos a todos aqueles que fogem a esse padrão. No romance de Toni Morrison, Pecola Breedlove é uma garota negra que deseja ardentemente ter olhos azuis, como forma de ser aceita pela sociedade branca e superar o conceito de que é feia por ter a pele mais escura e o cabelo muito crespo. O olho azul num rosto negro inverteria a lógica do olhar para o que se considera belo, numa metáfora do que pode a opressão da norma e do preconceito causar numa pessoa mais do que vulnerável, sendo criança, negra e do gênero feminino, numa sociedade machista e preconceituosa. Dito isto, voltemos ao livro: já a primeira página nos revela praticamente toda a história. Duas irmãs, também negras, plantam sementes de cravos-de-defunto como forma de ajudar de alguma forma mágica a menina de doze anos, Pecola, que vai ter um bebê de seu pai. Mas, por terem enterrado muito fundo as sementes, as flores não brotarão. O bebê de Pecola vai morrer e também o pai do bebê, o pai de Pecola. Daí em diante, o livro vai nos revelando todo o contexto da vida da garota que desejava ter a cor de seu olho mudada para o azul, e somente o que há de cronológico na história é a passagem das estações, porque o painel de sofrimentos e de dificuldades da menina e de todos os demais personagens vai se compondo aos poucos, em histórias e dramas que nos levam, através da linguagem quase sempre poética e, em certos momentos também coloquial, da autora, a uma narrativa impactante, de força literária e de aprofundamento nas raízes do preconceito e da discriminação, numa sociedade do interior dos Estados Unidos, na década de 1940. Devo dizer que não levei muito em conta, incialmente, o fato de ser a autora muito elogiada pelo ex-presidente Barak Obama, mas confesso que ele tem muita razão e bom gosto, pois realmente, dentre os inúmeros autores e autoras da negritude que tenho lido com imenso prazer, Toni Morrison ganha, em minha modesta opinião, status de escritora de primeira linha, em todos os sentidos. Sem dúvida, uma obra prima.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

A barca dos homens, Autran Dourado

 

A barca dos homens, Autran Dourado


Um louco com um revólver está solto na cidade. Essa notícia se espalha pela vila de pescadores e de veraneio situada numa ilha paradisíaca do litoral brasileiro. Esse o fio condutor da história. O “louco” é o jovem Fortunato, “ruim da cabeça”, como dizem, filho de Zulmira, a empregada negra da família de Godofredo, sua mulher, Maria, e os três filhos do casal, que não está em bom momento de sua vida conjugal, em férias na ilha. E essa notícia, meio verdade meio “fake”, vai alterar completamente a vida de quase todos os habitantes do local. Os dez policiais do destacamento, armados e assustados, terão como missão capturar o “louco armado” vivo ou morto, de preferência morto, com a ajuda voluntária de alguns “cidadãos do bem”. Em blocos temáticos que se alternam, Autran Dourado vai nos revelando o interior de cada uma das personagens envolvidas direta ou indiretamente na caçada. Entre os soldados, destaca-se o medo do recruta “virgem”, tanto sexual quanto de ação “de guerra” e o tenente comandante do destacamento, perdido em seus delírios de amor por Maria, mulher de Godofredo; os presos da cadeia municipal revelam, apesar de seus crimes, mais humanidade que muitos dos moradores, ao receberem em sua cela o pescador Tonho, amigo de Fortunato, bêbado e cheio de temores por não conseguir lembrar por onde possa andar o jovem caçado pela população, e lhe darem ânimo e até dinheiro para a tentativa de encontrá-lo; as prostitutas do bordel comandado por uma cafetina que alterna proteção às “meninas” e o controle sobre seus corpos, dentre as quais a mais jovem, que irá fazer do soldado virgem um homem; o padre mergulhado em dúvidas existenciais e teológicas que, instado a agir em defesa de Fortunato, pela mãe dele e por Tonho, sente-se impotente diante do medo e da resistência do comandante do destacamento policial. Enfim, um microcosmo de seres humanos mergulhados em seus problemas, em suas neuroses, em suas dúvidas, que vai envolvendo o leitor no paroxismo de uma caçada ou talvez pescaria (o autor define seu romance como uma história de caça e pesca), já que há uma personagem fundamental em toda a trama: o mar. Obsessivamente, percorre todas as narrativas. Ora calmo, ora agitado, o mar é o reflexo do estado de ânimo de cada personagem, como um ser vivo que se imiscui em cada pensamento, em cada detalhe da psicologia dos moradores da vila, reprimidos em seus anseios, em seus sonhos e vontades. Há esperança para Fortunato? O autor acena com um vislumbre de futuro, com o nascimento de um bebê no bordel, que ganhará o nome do jovem caçado. O que nos quer dizer ele com isso? Podemos apenas especular sobre qual seria essa mensagem. O que é claro é que o autor abre a nossa mente de leitores e nos convida a mergulhar no íntimo de cada personagem para que possamos, de forma humana, demasiado humana, tentar conhecer um pouco mais os abismos que existem na mente desses seres que somos nós e a quem denominamos humanos. Sem dúvida, uma obra prima da literatura brasileira, de um escritor que precisa ser urgentemente redescoberto pelas novas gerações, como exemplo para muitos escritores atuais de como expor literariamente a diversidade humana não só através do narrado, mas principalmente através da construção estilística de cada personagem, num contexto social e regional.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

A pediatra, Andréa del Fuego

 

A pediatra, Andréa del Fuego


Narrado em primeira pessoa por Cecília, ou melhor, pela doutora Cecília, uma pediatra neonatologista, o romance narra o dia a dia desta mulher no consultório, no hospital onde acompanha as parturientes e presta os primeiros atendimentos aos bebês etc. E neste etecétera cabem muitos outros detalhes, dentre os quais vamos descobrindo aos poucos que ela não gosta de crianças, o que é bastante peculiar. Depreendemos que fez pediatria motivada ou incentivada pelo pai, também pediatra. Mas, há mais coisas: logo no começo do livro, ela dá um fim na relação com o marido e, agora solteira, toma como amante um homem casado que mora em Santa Catarina, mas vem a São Paulo de vez em quando, o que lhe é bastante conveniente. No entanto, esse amante se muda com a mulher, grávida, para praticamente a mesma rua de Cecília. E a situação começa a se complicar pouco a pouco, entre as narrativas do dia a dia: ela assiste o parto da mulher do amante e presta os primeiros atendimentos ao filho do casal, o Bruno, chamado a partir daí de Bruninho. Quando, um dia, o pai leva o menino à casa de Cecília, ela, que não gosta de crianças, desenvolve uma paixão obsessiva pelo menino. E é essa paixão o núcleo da história. Ela se torna cada vez mais obcecada pelo menino e vamos acompanhando todo o desenvolvimento do processo dessa espécie de loucura, que a enreda numa trama que mistura suas encrencas com a empregada que está grávida do marido da irmã, em que vislumbramos uma família estranha, com suas dificuldades em lidar com um novo colega pediatra neonatologista que tem práticas naturais e defende o parto em casa, com a presença de doulas, coisa que Cecília não consegue admitir. Enfim, nos enredamos com ela na trama até o desfecho final, que parece óbvio, mas não é. Mas, para você, leitor ou leitora dessas linhas, descobrir por quê, só mesmo lendo esse romance muito bem urdido por essa escritora paulistana, Andréa Fátima dos Santos, ou Andréa del Fuego, que não à toa tem fogo no nome artístico.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A bibliotecária dos livros queimados, Brianna Labuskes

 

A bibliotecária dos livros queimados, Brianna Labuskes


Num dia qualquer de maio de 1933, numa praça de Berlim, um grupo de estudantes, inspirados pela propaganda nazista, faz uma grande fogueira, alimentada por... milhares de livros! E muitos cidadãos alemães deram fim às suas bibliotecas, porque também continham obras que eram contrárias à ideologia do partido nazista no poder. Em 1944, nos Estados Unidos, uma organização que envia livros de bolso aos soldados no front da segunda guerra, a Council of Books In Wartime, luta contra uma emenda de um senador que deseja estabelecer censura a esses livros. Esses são dois fatos históricos. A partir deles e de outros detalhes verdadeiros, Brianna Labuskes cria sua ficção histórica. Três mulheres têm suas vidas modificadas para sempre, ao se entrelaçarem. A escritora estadunidense Althea James é convidada por Joseph Goebbels para um intercâmbio cultural em Berlim, em 1933. Iludida pelo discurso nazista, encanta-se com o regime hitlerista. Mas, conhece Hannah Brecht, uma fascinante ativista antifascista, que lhe mostra a verdadeira face do regime. Entre elas estabelece-se uma ligação que vai além da amizade, ligação pontuada por amor, desejo, admiração, traição, ódio e separação. Na Nova Iorque de 1944, a publicitária Vivian Childs busca reunir todas as forças possíveis, desde a opinião pública até políticos e pessoas de prestígio, para impedir a censura aos livros enviados aos soldados. Sem conhecer a vida das duas mulheres e sem saber que se conheciam, Athea e Hannah são por ela reunidas num evento destinado a convencer o senador de suas ideias absurdas. E então, depois de muitos anos, as duas mulheres vão conseguir acertar as contas do passado complexo e doloroso por que passaram na Berlim da década de 30. Não é um livro “fácil”, ou seja, exige do leitor uma atenção que é mais ou menos normal quando a obra tem uma estrutura de alternar datas e locais diferentes a cada capítulo. Mas, não é só isso: a narrativa e os diálogos mais sugerem do que detalham muitos dos acontecimentos, que só vão fazendo sentido aos poucos, desvendando ao leitor um mundo fantástico e inspirador de amor aos livros e do poder da literatura de mudar vidas humanas. Uma ficção histórica é isto: a partir de fiapos de realidade, constrói-se um mundo fascinante que ilumina a própria História e nos leva a imaginar como teria sido diferente a realidade, se os fatos tivessem ocorrido como o escritor nos conta. Poderiam ser assim tão cruéis? Ou poderiam ter um final feliz, como nos sugere a ficção? Não importa: sentimo-nos mais humanos, quando chegamos à última linha de um livro como este e tantos outros que nos envolvem com suas histórias inspiradas ou baseadas em “fatos reais”, interpretadas pela imaginação e pela visão de mundo do escritor ou escritora. Haja vista o extraordinário “Um defeito de cor”, já comentado neste blog.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

A arte de produzir efeito sem causa, Lourenço Mutarelli

 A arte de produzir efeito sem causa, Lourenço Mutarelli



Traído pela mulher de uma forma pouco usual, sem emprego, sem perspectivas, Júnior volta para o apartamento do pai. Obrigado a dormir no sofá da sala, porque o seu antigo quarto está alugado para uma estudante de artes, Bruna, passa seus dias de ócio em conversas com um apontador do jogo de bicho e bebendo, tanto em casa como nos bares da redondeza. Começa a receber pelo correio pacotes anônimos com cds que não abrem e trechos de reportagens que envolvem o escritor William Burroughs, em forma cifrada, sendo uma delas sobre um episódio em que o escritor matou a mulher acidentalmente. Passa os dias dormindo e vasculhando o quarto do pai e da hóspede, chegando mesmo a descobrir um esconderijo de dinheiro da garota e, como estava sem dinheiro até para o cigarro, furta-lhe uma nota de cinquenta reais. Encontra numa gaveta do pai um revólver embrulhado num feltro. Convive com as saídas paternas para o namoro com uma vizinha, que ele nunca chega a conhecer, e vai mergulhando pouco a pouco na solidão e na loucura, até o desfecho final. O estilo do autor é quase telegráfico, com frases curtas e incisivas, levando o leitor ao abismo mental da personagem sem concessões, nem meias palavras. Sem dúvida, um romance forte, em sua temática, aberto em sua proposta de deixar ao leitor várias pontas soltas e a imaginar o que realmente levou aquele homem de pouco mais quarenta anos a ultrapassar seus limites humanos e mergulhar na loucura. Uma metáfora de nossos dias? Talvez. Que cada um tire suas conclusões.


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Os anos, Annie Ernaux



Os anos, Annie Ernaux



Uma autobiografia em terceira pessoa! Esse o feito extraordinário dessa que é uma das principais escritoras da França, atualmente. Aos 84 anos (nasceu em 1940), Annie Ernaux empreende uma narrativa em terceira pessoa, a partir de lembranças de sua infância no pós-guerra até o século XXI, mesclando elementos de sua vida pessoal (sempre usando o pronome “ela”), apenas, muitas vezes, sutilmente referidos, com os acontecimentos desses anos todos. Aliás, mais do que acontecimentos, fatos, pessoas, há sempre a visão pessoal da escritora, em comentários sagazes, numa escrita de estilo confessional, mas com uma alta carga de lucidez e de ironia na dose certa, sem comiseração. É claro que quase todos os fatos e quase todas as pessoas a que ela se refere aconteceram na França ou são franceses. Há muitas personalidades de época totalmente desconhecidas para nós. Há acontecimentos de que pouco ou nada ouvimos falar. No entanto, o leitor brasileiro não precisa correr atrás de cada referência: basta acompanhar a narrativa e, quando ela citar, por exemplo, uma personalidade da televisão francesa dos anos 60, basta pensar que poderia ser uma personalidade de nossa televisão mais ou menos da mesma época. Isso porque a história que ela conta é a história de todos nós que nascemos nos anos 40 ou início dos 50: tudo ou quase tudo que ocorreu na Europa, também ocorreu por aqui. É claro que a nossa penúria de pós-guerra não foi exatamente igual à penúria do povo francês, lembrada e contada pelos pais e avós da autora, mas tivemos, sim, também anos de muitas dificuldades econômicas e sociais. Por outro lado, se os franceses tiveram seus momentos de glória, com a eleição de presidentes da esquerda, também nós tivemos momentos de delírio cívico com, por exemplo, a campanha das diretas. Também a era das mudanças sociais, dos novos costumes e, principalmente, a mudança de hábito no consumo, inaugurando a era do consumismo, através do estabelecimento de novas relações entre consumidores e empresas, com o surgimento paulatino de milhares e milhares de produtos devidamente empacotados e dispostos em gôndolas assépticas de supermercados e shopping centers, o mesmo ocorreu aqui na terrinha. E todas essas mudanças repercutiram na música, nas artes, na moda, na linguagem etc. Vivemos e vivenciamos tudo isso. Acompanhamos as guerras, mesmo as que não nos diziam respeito, como algumas em que os franceses se envolveram, como a questão da libertação da Argélia. Assustamo-nos tanto quanto eles quando as famigeradas torres gêmeas de Nova Iorque vieram abaixo. Enfim, mesmo que não possamos falar de mudança de mentalidade, a segunda metade do século XX e os primeiros anos do século XXI constituem um tempo de grandes transformações na capacidade de percepção do ser humano sobre si mesmo. E essas transformações, que a autora tão bem nos leva a recordar, quase que detalhadamente, continuam, porque, como dizia a bela canção de Cazuza, “o tempo não para”. Então, leitor ou leitora dessas linhas, se quer um bom motivo para entender nosso tempo, mergulhe com prazer nas páginas dessa “autobiografia em terceira pessoa”, mesmo que você não tenha, como o autor destas linhas, vivido esses anos todos do pós-guerra e acompanhado ao vivo e em cores tudo por que passou esse nosso mundo, até chegar ao ponto de que precisamos, hoje, com urgência, frear o consumo, precisamos frear a ganância, para nos salvarmos do aquecimento global, de que a Annie Ernoux não chega a falar, mas que, com certeza, tem muito a dizer (se ainda não o disse, do alto de seus 84 anos).