sexta-feira, 31 de maio de 2024

A Odisseia de Penélope, Margaret Atwood

 A Odisseia de Penélope, Margaret Atwood


Homero, em sua Odisseia, retrata Penélope como exemplo de esposa fiel, ao esperar o marido, Odisseu, por mais de 20 anos, driblando seus pretendentes ao prometer que escolheria um deles quando terminasse de tecer uma mortalha, que era desmanchada sempre durante a noite, num trabalho interminável, com o auxílio de suas escravas. Odisseu, depois de lutar na guerra de Troia, se perdera pelas águas revoltas do mar Egeu, em lutas contra ciclopes ou nos braços de deusas em ilhas paradisíacas e, ao retornar a Ítaca, mata todos os pretendentes à mão da esposa e todas as doze escravas que a serviram. A notar que Penélope é prima da bela e fatal Helena, com quem dividia as honras de ser a princesa inteligente, mas não tão bela, ao se casar com Odisseu, o jovem de pernas curtas e partir com o marido para Ítaca. É a história de Penélope e seus ardis para manter o reino e criar o filho Telêmaco que a autora canadense nos relata com sensibilidade e bom humor, para tentar responder a várias questões que não ficaram claras na narrativa de Homero, numa releitura contemporânea e de um dos grandes mitos ocidentais. Não sei se Atwood leu Machado de Assis (provavelmente, não), mas o truque literário de dar voz a uma personagem morta que conta sua própria história permite não só essa dose de humour machadiano, mas também a liberdade de, usando de fontes antigas, recriar o mito de Penélope, dando a ela uma nova dimensão da mulher falsamente subserviente, criando novas perspectivas e possibilidades de uma “ideia velha caiada de novo” e ainda tentar resolver um antigo mistério, o motivo do enforcamento das 12 escravas fiéis a Penélope. Um livro para se ler com prazer, num final de semana de outono, em noites frias de quase inverno.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

América Latina lado B, Ariel Palacios

 

América Latina lado B, Ariel Palacios


“O cringe, o bizarro e o esdrúxulo de presidentes, ditadores e monarcas dos vizinhos do Brasil” – essa a promessa da capa do livro. No entanto, não se engane: muito além de tudo isso estão os crimes, os assassinatos, os genocídios de toda uma gente que se assenhoreou do poder em praticamente todos os países da América Latina, através de eleições fraudadas ou de golpes de estado, nesses dois últimos séculos, o que nos leva a dizer que a narrativa do repórter da Globonews traz mais motivos para chorar do que para se divertir com passagens vergonhosas, bizarras ou esdrúxulas. O Brasil não está na longa lista de países que tiveram governantes estúpidos ou absurdos, mas também aqui não nos enganemos: haverá, possivelmente, em breve, algum outro repórter a nos fazer passar o mesmo grau de vergonha que, por exemplo, passa a Argentina. O capítulo dedicado a esse país – que, nós, brasileiros, costumamos ver como exemplo de gente civilizada – apresenta-nos um festival de horrores de seus governantes, muitos deles eleitos pelo povo, mesmo sabendo de suas esquisitices. E isso vem acontecendo há muitos e muitos anos e repete-se a cada golpe de estado ou a cada escolha de novo presidente (haja vista as últimas eleições, quando o escolhido para a Casa Rosada é um indivíduo que conversa com seu cachorro que já morreu há muito tempo!). Essa vergonha alheia percorre de norte a sul o continente sul-americano, salvando-se apenas o pequeno e civilizado Uruguai que, apesar de haver sido governado durante uma década do século passado por uma ditadura militar disfarçada por um governante civil, tem pouco a acrescentar às esdrúxulas e incompetentes ditaduras e governos dos demais países. Necessário ainda dizer sobre esse livro que é uma narrativa escrita por um repórter, não por um historiador, numa longa reportagem semelhante às que se podem ler em revistas semanais ou mesmo em obsoletos jornais diários. Não há citação de fontes, o que nos leva a acreditar apenas na palavra do autor, da qual não podemos duvidar até prova em contrário. Enfim, para não nos alongarmos excessivamente nesta resenha, devo dizer que o leitor não deve buscar, absolutamente, divertimento nas páginas desse livro, pois o que ele narra em suas páginas pinga sangue e dor e opressão de muitos povos e está muito além de nossos mais terríveis pesadelos.

domingo, 19 de maio de 2024

Matadouro 5, Kurt Vonnegut

 

Matadouro 5, Kurt Vonnegut


Em termos literários, não basta o que se conta, mas como se conta uma história. A forma escolhida pelo escritor estadunidense para contar uma história tenebrosa da segunda grande guerra foi a de uma pretensa leveza, com muita ironia. Mas, não se engane: não há, nesta “leveza” nenhum “passar pano” à crueldade e à barbaridade do ser humano durante um conflito bélico. Seu herói, ou devíamos chamá-lo, na verdade, de anti-herói, tem um comportamento praticamente passivo durante todos os acontecimentos anteriores e durante o fato principal da história: a destruição da bela cidade alemã de Dresden, na primavera de 1945, às vésperas do término da guerra. O bombardeio liquidou 135 mil pessoas, mais do que a bomba de Hiroshima. Mas o fato é pouco lembrado pela história. Vamos ao protagonista do romance: Billy Pilgrim parece ser cidadão mais do que comum, do interior dos Estados Unidos. Ao ser levado para a guerra, cai prisioneiro das forças alemãs e é levado para Dresden, onde passa a trabalhar num depósito de carnes subterrâneo e, por isso, sobrevive à destruição da cidade. Mas Billy Pigrim, embora pareça um cidadão comum, tem uma característica que o torna diferente e que leva a narrativa para um patamar de mistura de ficção científica e realidade: faz viagens no tempo e tem certeza de haver sido abduzido por extraterrestres de um planeta distante. Essa capacidade, narrada com humor e um certo sarcasmo, leva-nos a momentos da vida de Billy, suas origens, sua formação, seu casamento etc. Enfim, vamos conhecendo pouco a pouco essa personagem inventada pelo autor para ser uma espécie de alter-ego dele mesmo, testemunha que foi da destruição de Dresden. Um assunto espinhoso, tratado com “leveza”, mas de uma forma realmente interessante, sem sensacionalismo, mas com muita imaginação e sensibilidade. Um livro para não esquecer jamais.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Jardim de inverno, Zélia Gattai

Jardim de inverno, Zélia Gattai


Relatos de exílio são, muitas vezes, histórias de saudades da pátria, de perrengues, de superação etc. Não é o caso de Zélia Gattai: seu livro trata do exílio a que se viram forçados ela e o marido, Jorge Amado, no final dos anos 40, início dos 50 do século passado, mas não tem saudosismo nem lamentações. Há dificuldades, sim, mas sempre narradas com leveza e um certo humor, que perpassam toda a obra, o que a torna uma leitura muito agradável. Agradável porque, além das histórias de rotinas de vida e casos engraçados e interessantes, há o relato de suas viagens, a convivência com muitos artistas, escritores, poetas, como Picasso, Pablo Neruda, Nicolás Guillén e muitos outros. São todos amigos do casal, são todos comunistas. E o comunismo está presente em toda a narrativa, já que ambos foram acolhidos pela Tchecoslováquia, depois de serem expulsos da França, em 1949. Ali vivem até 1952, num castelo próximo de Praga, de propriedade da União de Escritores daquele país. Jorge Amado exilou-se por motivos políticos, durante o governo Dutra, quando o Partido Comunista, depois de um breve período de legalidade, foi colocado de novo na clandestinidade. Zélia descreve com detalhes a vida do casal, o crescimento de seu filho João, que era ainda um bebê, ao chegarem lá, seu desenvolvimento e sua complicação com as várias línguas e depois o nascimento da filha, Paloma. Destaque especial para as viagens, sempre por motivos literários ou políticos, cumprindo agenda das atividades internacionais de Jorge Amado ou a agenda do Partido Comunista: Inglaterra, Moscou e depois a China. Essa última, uma viagem de sonhos para a autora, desde o embarque no famoso trem Transiberiano até as experiências com os escritores e o povo chinês, num momento em que a China começava um longo período conturbado do regime socialista há pouco implantado, quando o culto à personalidade de Mao Tsé-Tung vai desaguar na chamada Revolução Cultural, que Zélia vê com olhos bem críticos, porque perdeu nesse período vários amigos escritores, nos processos de delação e expurgo que o Partido Comunista chinês levou a cabo. Mesmo depois que voltam ao Brasil, a autora ainda avança um pouco na narrativa, ao relatar a participação do casal, ao lado de Pablo Neruda, no Congresso Mundial da Paz, realizado no Ceilão, em 1957; a Salvador, na Bahia, em 1968, quando receberam a visita de Roman Polanski; e ainda ao ano de 1984, em Paris, quando Jorge Amado é reabilitado pelo governo francês, ao condecorá-lo com a Legião de Honra. Enfim, mesmo que não goste dos comunistas como eu gosto, você pode ler com prazer essa narrativa de uma mulher que, casada com um dos maiores e mais famosos escritores do Brasil, não se deixou eclipsar pela luz do marido e construiu uma prosa memorialista com um humor delicado e pontuado de muita verdade, digna dos bons narradores desse gênero literário.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Cidade de vidro, Paul Auster

 Cidade de vidro, Paul Auster


Terminei o livro sem ter a mínima ideia do que escreveria sobre ele. Se gostei? Claro que sim. Mas, sua trama – falsamente simples e impactante – deixou-me sem palavras. Tentemos. Primeiro, um breve resumo, sem muitas indiscrições para o futuro leitor. Temos um escritor de livros de mistério, Quinn, morador de Nova Iorque. Escreve sob o pseudônimo de William Wilson e é, portanto, anônimo, além de solitário. Recebe alguns telefonemas procurando pelo detetive Paul Auster. Diante do pedido desesperado vindo do outro lado da linha, resolve assumir a identidade desse pretenso detetive, o que o leva a um labirinto de personagens estranhos: o jovem Peter Stillman, uma espécie de Kasper Hauser que não diz coisa com coisa; sua bela e estranha mulher que lhe diz que o rapaz está em perigo, porque seu pai vai sair da cadeia e tentará mata-lo. Esse pai, Paul Stillman – que é o personagem mais fascinante e misterioso da trama - está preso porque manteve o jovem prisioneiro durante 12 anos num quarto escuro, levando seguidas surras, e é o autor de um livro delirante sobre a torre de Babel. Quinn resolve proteger o jovem e seguir o velho pai, assim que ele pisar em Nova Iorque. E é o que ele faz. A partir daí, entramos com o pretenso detetive num universo kafkiano de mistérios e enigmas que não se resolvem. Ou só se resolvem na prosa falsamente realista e deliciosamente envolvente do autor. Nada mais há a se dizer. Que tenha o leitor dessas linhas despertado sua curiosidade e procure o livro (ou o conto, ao que parece), e terá a mesma surpresa e o mesmo deleite deste resenhista.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

A tolice da inteligência brasileira, ou como o país se deixa manipular pela elite, Jessé Souza

 

A tolice da inteligência brasileira, ou como o país se deixa manipular pela elite, Jessé Souza

Se você acredita na teoria do “brasileiro cordial” e outras baboseiras mais de nossos “maiores” sociólogos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Bolívar Lamounier etc. etc. etc. Se você acredita que o estado é sempre corrupto e que o mercado é que deve ser o dono de nosso destino, porque é “puro”, eu recomendo que vá caçar Saci em Botucatu ou rezar um terço para Nossa Senhora das Causas Perdidas, e não leia, absolutamente, não leia este livro do Jessé Souza. Porque ou você é um dos trouxas, como eu e milhões de brasileiros, ou você pertence ao 1% da população que nos faz de trouxas. Disto é que trata o livro: de como fomos e somos enganados por uma elite que mantém o poder e não quer, de forma alguma, largar a rapadura. O que autor quer com esse livro – que nada tem de pessimista, mas que é um alerta – é que conheçamos por dentro os mecanismos que nos levam a acreditar em teorias absurdas, em imagens distorcidas do Brasil, verdadeiros contos de fadas, para que continuemos a ser submissos aos interesses e à exploração de uma elite do dinheiro que manda e desmanda em nossas vidas e corrói toda a possibilidade de que ultrapassemos a condição de ser um dos países de mais desigualdade social do mundo. Sim, a taça é nossa! E parece que, dentro do engodo construído por um exército de intelectuais, como os citados acima, que influenciaram e influenciam as políticas públicas do nosso país e formatam o pensamento da elite exploradora, ainda vamos levar muitos anos para deixar essa condição. As classes populares são massacradas por formas indiretas de imposição de um pensamento amortecedor de suas possibilidades de reação, como o economicismo, o patrimonialismo, o conceito do estado corrupto etc., por meio de um brutal sistema de convencimento de que essas classes existem apenas para servir, usando para isso, a mídia sempre disposta a se vender aos poderosos, quando mesmo não tenham por donos esses mesmos poderosos. Dominam eles, os donos do país, todas as estruturas de poder, de informação, de inteligência e monopolizam os recursos escassos para manter sob suas rédeas a maioria absoluta do povo, impondo, através do tal mercado “santificado”, a exploração deslavada, usando para isso a manipulação dos preços, a manutenção das taxas de juros elevadas, o rentismo canalha e todos os demais meios de dispoõem para o entorpecimento da população, cada vez mais iludida pelo canto da sereia de uma extrema direita golpista, entreguista e que só defende os interesses dos poderosos. O livro foi escrito em 2014 e, portanto, não cobre a canalhice golpista após as manifestações populares manipuladas de 2013, mas abre a nossa cabeça para o que veio depois. E o mais importante: alerta-nos sobre os tais mecanismos de manipulação de que lançam mão os poderosos para manterem anestesiados os indivíduos inteligentes e as classes sociais e nos fazerem de tolos, para que os privilégios injustos sejam normalizados e eternizadas, como se eles, os poderosos, “merecessem” como um “dom natural e talvez divino” (como as antigas dinastias régias) os privilégios que acumulam. Portanto, meu caro e parco leitor dessas linhas: se você acredita na perversidade do estado, se você acredita que a corrupção é só do estado e não do mercado que usa e abusa do seu poder para mantê-lo escravo de sua condição de vida, você deve acreditar também em papai noel e em coelhinho da páscoa. E não deve ler esse livro.