segunda-feira, 29 de julho de 2024

História universal da infâmia, Jorge Luis Borges


História universal da infâmia, Jorge Luis Borges


Inicialmente, pensa-se: Borges está brincando. Sim, ele brinca com a imaginação do leitor, o tempo todo. Experimenta com nossas emoções e nossa capacidade de criação o que seria mais tarde a própria essência da literatura do grande escritor em que se tornou. Não são contos, nem ensaios. São apenas divagações do autor, em textos mais ou menos curtos, em que ele trabalha com material histórico ou histórias de outros autores ou ainda com outros materiais, como filmes e pinturas, para nos levar a uma reinterpretação personalíssima e cheia de ironia e humor das vidas e fatos infamantes dos seres humanos, através dos tempos. Escrito na década de 30, quando Borges ainda se iniciava nas artes do conto e da literatura que o levaria se se tornar um dos seus maiores expoentes , delicia-nos com observações ferinas e deturpações engraçadas da vida dos personagens escolhidos. Há sempre um lado impensável ou impensado em cada detalhe, em cada circunstância, que a pena do autor disseca e distribui com um estilo ao mesmo tempo leve e ousado. E ainda nos brinda com um conto desconcertante, cujo título já nos causa estranheza, “O homem da esquina rosada”. Enfim, um livro curto, apenas 96 páginas, que pode servir a um leitor que ainda não desvendou ou ainda não teve oportunidade ou coragem de enfrentar a grande obra desse argentino universal como uma excelente introdução aos meandros de sua prosa, já que nos deixa a vontade de querer mais de uma literatura sempre surpreendente.

sábado, 27 de julho de 2024

Mad Maria, Marcio Souza

 Mad Maria, Marcio Souza


O escritor amazonense Marcio Souza não perdoa a estupidez dos que tentaram domar a floresta amazônica. Neste romance, refaz a saga de uma empresa estadunidense que teve por objetivo construir uma ferrovia que pudesse competir com o Canal do Panamá, carregando o látex extraído da floresta a preços mais competitivos do que a difícil tarefa de ultrapassar as corredeiras e cachoeiras dos rios amazônicos. É uma narrativa cruel, sem dúvida, mas que nos coloca diante da corrupção de políticos e empresários, durante o governo de Hermes da Fonseca, em 1911. Há personagens icônicos, como o jovem médico estadunidense e seu, no início, embate com o experiente engenheiro inglês, quanto aos métodos de administração, extremamente extenuantes e cruéis, da mão de obra encarregada de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré, através de pântanos alagados e da quantidade de cobras, escorpiões e formigas da floresta. Os operários são principalmente negros vindos de Barbados, mas também há alemães, chineses e de várias outras nacionalidades, todos explorados até a morte – e o número de mortos é assustador, tanto por doenças quanto por brigas e vinganças entre eles. Também há políticos corruptos, no Rio de Janeiro, manipulados pelo empresário espertalhão, Percival Farquhar, que a todos compra com artimanhas e com o poder da grana que “ergue e destrói” não só coisas belas, mas também obras absurdas, para o ganho dos capitalistas internacionais. A saga no “inferno verde” dos homens que constroem a ferrovia tem lances macabros, em que a fúria humana se materializa diante da natureza impoluta, mas principalmente diante da ganância e da estupidez daqueles que acham que podem usar e abusar dos seres humanos, para a consecução de seus objetivos. A ferrovia teve um grande valor estratégico, sim, para o país e só foi desativada em 1966 pelo governo de Castelo Branco, mas o seu custo em vidas humanas ainda não foi plenamente calculado e o livro de Marcio Souza tem essa pretensão, a de levar o leitor a pensar seriamente no quanto este país ainda precisa de governos que não se rendam ao capital estrangeiro e não entreguem nossas riquezas à custa de vidas e da deterioração do meio-ambiente. Sem dúvida, um libelo contra a exploração, não só de um país, mas do ser humano pelo ser humano.

domingo, 21 de julho de 2024

O quarto azul, Georges Simenon

O quarto azul, Georges Simenon



Um dossiê não tem psicologia, sentimentos. É apenas um relato objetivo. Duro. Sem truques literários. “O quarto azul” insere-se nesta categoria: romance dossiê. Tem por objetivo nos levar aos cantos sombrios da personalidade humana, sem sentimentalismos, apenas os fatos. Não é um livro longo, tem menos de 140 páginas, suficientes para nos fascinar. A história em si não é complexa, complexos são os relacionamentos. E o autor não nos traz os porquês, deixa que nossa imaginação flua. Dito isso, vamos a um breve resumo da história. Numa pequena cidade do interior da França, Tony Falcone, um filho de um imigrante italiano, reencontra, já adulto e casado e tendo jma filha a quem idolatra, uma colega dos tempos de escola, Andrée Despierre, também casada com um próspero comerciante da cidade. Tornam-se amantes e encontram-se durante onze meses no quarto de um hotel de seu irmão. O marido de Andrée tem a saúde frágil e falece. Dois meses depois, Tony está preso e sua vida é detalhadamente esmiuçada em audiências diante de um juiz. Teria o rapaz assassinado o marido da amante? Numa audiência de acareação, reencontra Andrée, que também está preso. Por quê? Tony tem, afinal, uma reação de ódio e revolta contra a ex-amante. Embora o romance tenha uma estrutura de dossiê, todo o enredo é contado sob o ponto de vista de Tony, ou seja, só conhecemos a protagonista, Andrée através daquilo que o narrador nos conta de seu amante: as relações sexuais intensas e às vezes um pouco violentas, suas insinuações etc. Bem, paremos por aqui, para deixarmos um possível futuro leitor desse intrigante romance se deleitar, como eu, pelos mistérios, ou melhor, pelo desenrolar do enredo que nos leva, como afirmei antes, aos descaminhos dos relacionamentos humanos, num desfecho aberto e primoroso, da mais pura literatura de ficção no gênero “crime e castigo” de um dos mestres do suspense.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

It – A Coisa, Stephen King

It – A Coisa, Stephen King


Devia ter lido esse livro há muito tempo, quando sentiria a emoção de todos os arrepios e pesadelos pretendidos pelo autor. Agora, mais velho, só me restou a racionalidade e poucos arrepios. Mesmo assim, impressionaram-me a arquitetura literária e o fôlego de quem sabe contar uma história de terror, em mais de 1.100 páginas, constituindo-se num dos grandes escritores desse gênero. É quase impossível resumir em poucas linhas seu enredo, mas tentemos. Na pequena cidade de Derry (fictícia) do Maine, nos Estados Unidos, um monstro multiforme aterroriza os cidadãos, há muito tempo, em ciclos de mais ou menos 27 anos, matando e literalmente devorando partes de corpos de crianças e adolescentes. No ano de 1958, um grupo de seis meninos e uma menina, pré-adolescentes todos eles, na faixa dos 11 anos, resolvem enfrentar o monstro que matara o irmão de um deles, aquele que é uma espécie de líder do grupo. O monstro mostra-se sob diversas formas, como um pássaro gigantesco, um lobisomem etc., dependendo da imaginação de cada um, mas geralmente sob o disfarce de um palhaço, o Penniwise. Os garotos não têm como inimigo apenas esse monstro que habita os esgotos e os subterrâneos de Derry, mas também a gangue de moleques liderada por um menino cruel, que sempre os persegue, para surrá-los e tem instintos assassinos. Mergulham, no entanto, nos esgotos da cidade e nos seus subterrâneos e travam uma luta de improvável vitória contra a aranha gigantesca que é a forma mais assustadora do monstro. Pensam tê-lo derrotado. Ao saírem para a luz do sol, fazem um pacto: se o monstro voltar, eles se unirão novamente. Cada um segue sua vida, tornando-se cidadãos e cidadã razoavelmente bem-sucedidos em seus respectivos ramos de atividade, em lugares distantes e até mesmo na Inglaterra, esquecidos de tudo quanto passaram naquele inverno de 1958. Somente um deles, Mike, ficou na cidade, na função de bibliotecário. E então, 27 anos depois, o monstro ressurge e volta a atacar. Chamados de volta à cidade natal, retomam o pacto da infância e voltam a lutar, numa batalha de vida e morte, contra os mesmos terrores do passado, menos um deles, que se suicida, ao receber o chamado. Bem, fiquemos por aqui, porque o livro é longo e impressionantemente detalhista, na reconstituição dos fatos tanto do passado da cidade, quanto da vida e das dificuldades de cada um dos garotos e, depois, dos homens e da mulher em que se tornaram. Nesse relato, o autor aborda temas complexos e atuais, como violência doméstica, relações amorosas e sexuais complicadas, poluição, progresso a qualquer custo, assassinatos e indiferença e esquecimento etc. Mas, principalmente, o tema mais importante da narrativa, a noção de amizade e de compromisso entre as pessoas, os meninos de 11 anos e os adultos de 27 anos depois que, mesmo passados todos esses anos, se reúnem e se fortalecem na amizade entre eles, para derrotar uma força poderosa e destrutiva. Será a Coisa (It) que aterroriza a pequena Derry uma metáfora de todos os nossos medos? Ou a metáfora de um país que tem em seus subterrâneos, como uma força autodestrutiva, os monstros que tornam a sociedade estadunidense uma sociedade quase doentia na relação com a violência e no culto das armas? Enfim, se não tive os arroubos emotivos que teria quando mais jovem, ao ler esse clássico do terror, encontrei na longa narrativa elementos suficientes para, racionalmente, mergulhar em muitos aspectos da psique humana, dos medos humanos e de nossas relações não só uns com os outros, mas também com o mundo em que vivemos, principalmente quando acompanhei a batalha final do grupo que mergulha de novo nos subterrâneos em busca de monstros que vivem provavelmente no interior de cada um de nós, enquanto lá fora, a cidade de Derry mergulhava numa tempestade que quase a destrói completamente. Qualquer coincidência com o mundo em que vivemos hoje, creio eu, não é mera coincidência, mas fruto de nossas escolhas. A Coisa está morta? Não sabemos, ou talvez apenas nos esquecemos dela para sobreviver, como os heróis do livro também um dia se esqueceram. Valeram. Portanto, os dias e noites que gastei lendo It, A Coisa, de Stephen King.