domingo, 8 de dezembro de 2024

O vendedor de passados, José Eduardo Agualusa



O vendedor de passados, José Eduardo Agualusa


Um pequeno grande livro para se ler com a calma de uma tarde de verão. Saboreando cada palavra, cada frase, cada página do estilo cativante desse autor angolano de língua portuguesa. Um melodrama em que ninguém é exatamente aquilo que diz que é e tudo se explica ao final. Com exceção do personagem principal, o vendedor de passados falsos, Félix Ventura que, além de ter esse ofício estranho, é albino, mora numa casa entulhada de livros e tem por amiga uma osga, ou seja, uma espécie de lagartixa doméstica. Aliás, é essa lagartixa a narradora da história. Como Félix fabrica passados, ou seja, árvores genealógicas falsas, para celebridades, inclusive políticos, que precisam de uma história de vida que seja palatável ao público e conveniente para seus negócios, ganha bem e tem uma vida confortável. Um dia, recebe a visita de um estrangeiro que deseja uma identidade angolana. Oferece-lhe um pagamento muito alto por isso e o mergulha na busca de um passado de fatos complexos e de natureza política que vai aos poucos desvelando todo um sistema social de crimes e perseguições, numa crítica contundente à atual situação do país. Pode um passado falso encontrar a verdade? Será nossa memória totalmente confiável, quando se trata de reconstituir o passado? São perguntas que podem surgir à mente do leitor, ao final desse delicioso e instigante romance narrado por uma lagartixa, com seu final emblemático e intencionalmente provocante.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Nexus – uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial, Yuval Noah Harari

 Nexus – uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial, Yuval Noah Harari

 

A evolução do ser humano, desde há 100 mil anos, foi construída a partir de significativas revoluções que geraram poder à humanidade para construir o que hoje somos e que chamamos de civilização. O autor historia a trajetória humana, mostrando como esse poder de modificar o mundo e reordenar a vida de milhões ou bilhões de pessoas veio através de redes de informação, no início precárias, quando a informação só podia fluir entre poucos humanos, em agrupamentos mínimos ou aldeias com poucos habitantes, até chegar a nossos dias, quando todo o mundo pode ser conectado através de uma única rede de comunicação. O que distingue este momento das revoluções anteriores é que nenhuma rede de informação – por exemplo, a constituída pela invenção da imprensa – tinha o poder de modificar a si mesma e adquirir conhecimento por si mesma, como a Inteligência Artificial. Um livro impresso não tem o poder de aprender ou de se alterar, é apenas um veículo estanque. O problema é que comunicação, se é poder ou gera poder, não significa que contém a verdade. A bíblia cristã, por exemplo, foi o fruto de escolhas que mudaram a mentalidade humana: se os compiladores tivessem escolhido outros livros, que continham outras informações ou outras ideologias diferentes das que estão hoje nesse livro, outra poderia ser a doutrina cristã. E mais: a bíblica cristã foi canonizada como verdade e mesmo que contenha informações ou ideias e ideologias contraditórias que o tempo provou serem inverdades e, às vezes, verdadeiros absurdos, ela não pode ser modificada, pois é um livro sagrado. E isso vale para todos os demais cânones sagrados de todas as demais religiões. Outras redes de comunicação, no entanto, puderam, através da história, constituir formas ou maneiras de se autorregularem e de poderem se alterar. Toda revolução trouxe para uma humanidade dois lados: o de progresso e de desenvolvimento e outro de muita desinformação e até mesmo muitas desgraças; as revoluções trouxeram o bem e também o mal. Criamos muitas mitologias, para atingir objetivos nem sempre baseados na melhor escolha. No entanto, pudemos nos livrar de muitos de seus males, porque seus sistemas de informação não eram sagrados, podiam ser modificados. Agora, estamos diante de uma revolução que pode trazer para a humanidade uma aurora de progresso inimaginável ou lançá-la num processo de autodestruição sem precedentes, com a Inteligência Artificial, um sistema de informação que tem a capacidade de se autogerir e evoluir até a um ponto muito além de nossa capacidade de compreensão. Não há catastrofismo nas advertências do autor, mas apenas o alerta de que precisamos não nos deixar dominar por essa nova inteligência não humana que ameaça ou pode ameaçar a própria existência da humanidade. Assim como no passado fizemos nossas escolhas, precisamos de muita inteligência e criatividade humanas para percebermos que a informação dessa poderosa rede de computadores não é a matéria prima da verdade. Temos que impedir que episódios como a caça às bruxas, como o nazismo e estalinismo sejam replicados por governos totalitários ou usados por governantes populistas para nos escravizar ou nos levar para caminhos de destruição e sofrimento, usando como arma essa fantástica criação humana que é a Inteligência Artificial. Para isso, a humanidade precisa criar regulamentos ou regramentos que não permitam ou tentem impedir o uso da IA de forma indiscriminada ou para o mal. Enfim, um livro para se ler com os olhos no passado e o pensamento no futuro, principalmente agora que estamos diante de ameaças ainda maiores provocadas pelo aquecimento global, fruto de escolhas que o capitalismo nos impingiu há séculos. A IA pode nos salvar, mas isso só depende de nossas escolhas.