quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O pobre de direita, Jessé Souza



O pobre de direita, Jessé Souza


Quem tem medo de Jessé Souza? Na cama, o gato dorme placidamente e eu penso: como esse gato, dorme a consciência de vasta parcela da população que vota no inimigo, ou seja, na extrema direita, numa placidez que beira à estupidez, mas deve haver motivos para essa letargia, para essa entrega do pescoço à forca, para que esse povo imagine que aqueles que o oprimiram há séculos vão salvá-lo da miséria e da falta de perspectivas de vida em que estão mergulhados por promessas que contêm sob a capa açucarada de felicidade o látego do opressor que o mantêm preso a essa condição de escravidão e ignorância. Então, me volto para o livro de Jessé Souza. Historia ele, a partir do século XIX, nos Estados Unidos o processo de alienação das classes populares para que a elite se mantenha no poder, processo que se replica pelo mundo e chega ao Brasil. E ele dá nome aos bois, aos bois que estão à frente da boiada. Os tempos mudaram, os métodos de alienação das classes populares se aperfeiçoaram. Mas, por que a adesão de grande parte das classes exploradas às pautas dos exploradores? Por que o pobre de direita no Brasil vota em Bolsonaro, alguém que sempre manifestou desprezo a pobres, gays, mulheres e, principalmente a negros? A ascensão do neopentecostismo explica muita coisa. Afinal, as igrejas evangélicas, em sua maioria, tornaram-se palanque para a propaganda do candidato nazifascista, numa mistura canalha de religião e política. Mas, isso não explica tudo. E o autor vai fundo na análise, entrevistando e analisando as falas de vários representantes dessa classe explorada e empobrecida, mas que se julga classe média, numa confusão ideológica que os leva a votar na extrema direita. E descobre raízes históricas para isso, ligadas não mais ao racismo estrutural (cuja manifestação tem sido combatida e mitigada), mas ao que ele denomina “racismo cultural”, que está muito além das pautas econômicas pelas quais muita gente justifica muitos acontecimentos políticos e sociais. Há todo um tecido complexo e orquestrado desde há muito tempo pela engenharia ultraconservadora e é por dentro dessa colcha de identificações, estratificações sociais, fervor religioso, diferenças regionais e imaginação política que o autor reflete sobre as principais causas da “vingança dos bastardos”. Assim, torna-se possível examinar, de fato, como pensam esses grupos sociais ressentidos que passaram a se organizar nas sombras da principal promessa da Constituição Cidadã – a construção de um Brasil democrático, justo e igualitário, sem discriminações e com garantias universais. Jessé confirma mais uma vez sua verve analítica e sua capacidade de ler e compreender os meandros da sociedade brasileira. Um livro para ser lido, relido e assimilado por formadores de opinião, para que, quem sabe um dia consigamos desarmar essa bomba ideológica que se entranhou na mentalidade de uma grande parte da população brasileira e possamos sonhar por dias melhores para todo o povo. E que a extrema direita continue tendo medo de Jessé Souza!

domingo, 23 de fevereiro de 2025

A Contadora de Filmes, Hernán Rivera Letelier



A Contadora de Filmes, Hernán Rivera Letelier


Há longas narrativas que se apequenam assim que fechamos o livro. Não que não tenha sido importante lê-las, mas não ficam trampolinando em nossa mente, fazendo-nos remoer seus meandros, por muito tempo. Ao contrário, há pequenas narrativas que se agigantam em nossa mente, porque nos fazem pensar em quanta vida e em quantas lições encontramos em suas poucas páginas. E isso aconteceu comigo ao terminar de ler A Contadora de Filmes. Uma narrativa breve, seca, direta, sem metáforas ou subterfúgios. Apenas a vida, nada mais que a vida da narradora, Maria Margarita, que conta sua infância e adolescência ao lado de seus quatro irmãos homens, numa pequena aldeia do deserto do Atacama, uma das regiões mais secas e mais pobres do Chile e, talvez, do mundo, no final dos anos 50. Ela assiste, aos domingos, ao filme que passa no cinema a que seu pai, inválido numa improvisada cadeira de rodas, e seus irmãos não podem assistir, por falta de dinheiro, e tem como responsabilidade contar a eles, com todos os detalhes, o enredo do filme. Aperfeiçoa-se a tal ponto nessa arte de contar filmes que, aos poucos, chama a atenção de todos os demais habitantes da aldeia. Mas, um dia algo novo aparece na vila, algo que vai mudar para sempre a vida da jovem órfã de mãe viva, aquela bela mulher que teve seu primeiro filho aos 14 anos e aos 26 deixou para sempre a família, em busca de uma vida melhor como cantora e dançarina. Como disse, o relato é direto, seco, não há sofrimentos lamentados, apenas vividos. E ficamos, ao final de suas 85 páginas, pensando em como o ser humano se desumanizou diante das condições de exploração causadas pelo capitalismo predatório, sem que haja muitas esperanças para os miseráveis, mesmo quando um novo governo, capitaneado por Salvador Allende, é eleito e todos sabemos o final da história. O livro lembra um pouco Vidas Secas, de Graciliano Ramos, pelo estilo do autor, em fazer com que a personagem de Maria Margarita nos narre sua história sem se lamentar, sem qualquer truque de linguagem, uma história de vida seca e ao mesmo tempo complexa, como a de todos os seres humanos, mas dentro de condições de miserabilidade com que os miseráveis desse mundo infelizmente se acostumam, por não conseguirem encontrar perspectivas de mudança. Um livro inesquecível, sem dúvida.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

A livraria dos achados e perdidos, Susan Wiggs

A livraria dos achados e perdidos, Susan Wiggs


Blythe Harper administra uma livraria num prédio histórico, em São Francisco, Califórnia, herança de família. Sua filha, Natalie, não quis se comprometer com o negócio da mãe e trabalha como executiva de uma vinícola, numa outra cidade, Sonoma. Ao receber uma promoção, aguarda a vinda da mãe e do namorado, um piloto, para a festa na empresa, mas o avião cai e ambos morrem. Angustiada pela perda, deixa o emprego seguro, mas que ela odiava, para cuidar dos negócios da livraria e, principalmente, de seu avô doente, Andrew. Aos poucos descobre que a livraria está falida e a única solução é sua venda, para pagar as dívidas, mas ela está em nome do avô, que se recusa a vendê-la. E o prédio precisa de reformas urgentes, para as quais conta com os serviços de um faz-tudo, Peach Gallagher, contratado por sua mãe. Até o final da longa narrativa, acompanhamos a luta de Natalie para recuperar as vendas da livraria, seus cuidados com o avô e suas dúvidas amorosas. É o típico romance escrito para se tornar best-seller, de autora já conhecida do público. Mas o enredo é bem urdido e tem a capacidade de captar a atenção do leitor até o final feliz, típico dos filmes de Hollywood. As dificuldades econômicas e emocionais da protagonista não chegam a um ponto de total empatia para com o leitor ou a leitora, levando-os a uma catarse no final, pois não há antagonismo, ou seja, não há vilões físicos, só mesmo a luta para manter aberta a livraria, mas é bem contado o suficiente para não nos deixar indiferentes, principalmente porque é uma história sobre livros. E histórias sobre livros sempre atrai, pelo menos a mim, bibliófilo contumaz. Portanto, caro amigo e amiga desse blog, se deseja uma leitura agradável, para as noites quentes desse verão, podem estar certos de que Susan Wiggs atenderá completamente suas expectativas.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

A incrível lavanderia dos corações, Yun Jungeun



A incrível lavanderia dos corações, Yun Jungeun


A obra ficcional leva-nos para uma supra realidade. Essa supra realidade reflete o mundo real, tem regras próprias deve, como condição básica, coerência interna, num jogo de espelhos. Ao aceitarmos esse jogo, temos a possibilidade de entender melhor o mundo em que vivemos e, principalmente, a nós próprios. Quando Lewis Carrol nos faz viajar com sua Alice por um espelho mágico, sabemos que aquele mundo fantástico é absurdo, mas por ele navegamos prazerosamente e cada um de nós tira suas lições de vida. Assim fazem todos os bons ficcionistas. E assim fez a autora coreana de “A incrível lavanderia dos corações”. Convida-nos o seu livro a um mundo de fantasia, uma longa fábula, da qual podemos tirar lições de vida. A história é longa e tem inúmeras histórias secundárias e muitos detalhes. Mas podemos resumir assim: uma garota ouve uma conversa dos pais e descobre que tem um dom, mas ela não fica sabendo qual é esse dom, porque eles morrem antes de lho revelar. Para reencontrar os pais e recuperar o mundo mágico da infância, ela vive mil vidas e acaba por se encontrar numa pequena cidade chamada Vila dos Cravos. Como nem se lembra mais do próprio nome, autodenomina-se Jieun, ao ser interrogada pela dona de um bar, no alto de uma colina de onde se descortina uma bela vista. Pensa que seu dom é consolar as pessoas e, para isso, instala nessa colina a sua Lavanderia dos Corações, onde tem por missão apagar a más recordações que seus clientes escolherem para serem apagadas e, assim, viverem mais felizes. A esse mundo mágico acorrem várias pessoas, cada uma com suas recordações, suas vidas complicadas e, para cada um, a enigmática Jieun oferece seus serviços. Um dia, porém, descobre que ela própria precisaria ter seu coração lavado das más lembranças. No entanto, questiona-se se é esse o melhor caminho para encontrar a paz que tanto deseja. A situação toda é mais complexa do que meu resumo, mas fiquemos por aqui. O que eu quero deixar para meus ocasionais leitores, nesse breve comentário, é que se lê essa história – fantástica, absurda, misteriosa – com muito prazer, porque, além de ser contada com muita competência, numa estrutura moderna, podemos dela retirar muitas lições ou reflexões sobre o nosso mundo real, já que o que nos fica, ao final da leitura, é que, por mais vicissitudes que a vida nos proporcione, conviver com todas as nossas lembranças nos permite ter a plenitude de viver um dia depois do outro, ou seja, viver o presente, aceitando o passado e nos preparando para o futuro, sem esquecer que a vida é hoje. Portanto, além de uma história fantástica, da viagem por um mundo de fantasias que nutrem nossa imaginação, temos uma fábula que, sem moralismos, deixa em nossa mente a velha máxima de Horácio: CARPE DIEM (carpe diem quam minimum credula postero, literalmente: “aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã”).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A malnascida, Beatrice Salvione

A malnascida, Beatrice Salvione


Todos nós vivemos ritos de passagem da infância para a adolescência, como preparação para enfrentar os desafios da idade adulta. Nem sempre percebemos claramente que os momentos difíceis dessa época, as dificuldades, as dúvidas, as amizades e inimizades, o tropeços e pequenas vitórias são ritos de passagem que, em muitas culturas, são bem mais explícitos, muitas vezes com desafios e provas determinados pelos adultos. O romance da italiana Beatrice Salvione trata justamente dessa época complicada da vida de duas garotas de origens bem diversas: uma, a narradora (Francesca) é filha única de família razoavelmente estruturada, de classe média; a outra (Maddalena), a malnascida do título, vive com a mãe e os irmãos, um rapaz e duas meninas, em situação de quase miséria. Estamos em 1936, em Monza, Itália, em plena vigência do fascismo de Mussolini, cuja figura é onipresente em todos os acontecimentos sociais do país. Também estava em curso a guerra expansionista de Mussolini contra a Abissínia (Etiópia). E tudo isso tem influência direta ou indireta na vida da cidade e na sociedade. A história narrada no romance começa quando Francesca, de 13 anos, está nas margens do rio Lambro, vergada sob o peso de um homem morto que tentou violá-la. Maddalena sai da água e ajuda-a a livrar-se do corpo: escondem-no no meio de arbustos. A amizade entre as duas começara um ano antes, quando Francesca se apaixonou pelo modo de vida livre da garota vista por todos como uma malnascida e, portanto, renegada pela sociedade. Muitas aventuras já haviam elas vivido até aquela data fatídica e a reconstituição de todos os momentos vivos por ambas leva-nos a uma história de amizade e de luta contra as injustiças sociais, numa época complicada da Itália e da sociedade italiana, tomada por antigos preconceitos e, agora, pela doutrina fascista. Uma bela história, sem dúvida, que se lê com o prazer de uma escrita ágil e moderna.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, Rainer Maria Rilke


Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, Rainer Maria Rilke


Malte Laurids Brigge, uma espécie de alter-ego do autor, nasceu num castelo da Dinamarca, de família nobre, e teve uma infância idílica, mas um tanto complicada, já que sua mãe o vestia de menina até uma certa idade, por trauma de uma filha que morreu. Agora, em Paris, uma cidade que ele vai conhecendo pouco a pouco e que lhe é inóspita, embora deslumbrante, rememora a infância perdida, a vida no castelo, as mulheres que o frequentavam, alguns acontecimentos marcantes e seus amores do passado. E anota em seus cadernos os sofrimentos e angústias do escritor. Não é uma leitura fácil, já que há muito pouco de enredo e muito de digressões e comentários sobre inúmeros temas caros à geração do início do século XX, quando foi publicado o livro. São temas como a busca da individualidade, a tentativa de compreender o significado da morte, as dúvidas relacionadas à religião e à existência e presença de Deus na vida dos seres humanos, a própria literatura e a paixão, em longos trechos complexos, em que se percebe a influência de Nietzsche. Como romance de reflexão e de aprofundamento das dúvidas humanas, influenciou obras importantes, como A náusea, de Jean-Paul Sartre. Aventurar-se por suas páginas exige um exercício de atenção e de dedicação, para apreender toda a filosofia e toda a erudição que o romance contém, como pano de fundo para a busca de autocompreensão da personagem que, repito, é um reflexo da vida do próprio autor, principalmente na fase em que Rilke morou realmente em Paris. É considerado uma das obras-primas do romance alemão do século XX.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

O Aleph, Jorge Luis Borges

 O Aleph, Jorge Luis Borges


Entre os maiores poetas e contistas da América Latina, sem dúvida se coloca o nome de Jorge Luis Borges. Lê-lo é um desafio e uma obrigação. Desafio porque seus contos – e “O Aleph”, que contém 17 contos, inclusive o que dá título ao livro – desafiam nossa imaginação ao fazer-nos mergulhar no mundo fantástico da criação literária, em que a filosofia, a história e a ficção se misturam, sem dar fôlego ao leitor, diante da imaginação sem limites do argentino. E é uma obrigação, porque nenhum apreciador da boa literatura pode prescindir das invenções literárias e da capacidade de manipular a realidade, num contexto em que cada conto desliza do real para contextos incomuns, ganhando significados extraordinário. Os motivos borgeanos recorrentes do tempo, do infinito, da imortalidade e da perplexidade metafísica jamais se perdem na pura abstração; ao contrário, ganham carnadura concreta nas tramas, nas imagens, na sintaxe, que também são capazes de resgatar uma profunda sondagem do processo histórico argentino. O livro se abre com "O imortal", onde temos a típica descoberta de um manuscrito que relatará as agruras da imortalidade. E se fecha com "O aleph", para o qual Borges deu a seguinte "explicação" em 1970: "O que a eternidade é para o tempo, o aleph é para o espaço". Como o narrador e o leitor vão descobrir, descrever essa ideia em termos convencionais é uma tarefa desafiadoramente impossível. Borges sendo Borges; melhor, impossível.