E se eu fosse puta, Amara Moira
Racionalmente, não tenho nenhum preconceito, nem “racial”, nem sexual, nem social. Porém, como hétero criado numa sociedade preconceituosa, não sei se guardo bem lá no fundo do inconsciente laivos de preconceito, principalmente sexual. Por isso, se escapar algum termo inconveniente na abordagem que vou fazer desse livro “chocante” (explicarei as aspas mais adiante), que me perdoem os leitores. Difícil falar do livro apenas, como gosto de fazer, sem me referir à autora. Amara Moira é uma professora de literatura, formada pela Unicamp, que transicionou um pouco tardiamente, aos 29 anos, e viveu um período como travesti e prostituta nas ruas de Campinas. O livro é uma compilação de relatos publicados no blog da autora, relatos de inúmeras transas ocorridas com homens, a “fina flor” dos machos. Pode chocar as mentes conservadoras, porque não há condescendência para qualquer firula romântica ao falar da prostituição: são relatos crus e diretos, detalhados, que põem em xeque a tal “macheza”. Na minha opinião, e foi o que percebi ao ler o livro, há, no mundo da prostituição de travestis (que muitos diriam “submundo”) uma série de regras e convenções que se repetem ad nauseam, em que o “cliente” dos favores sexuais tem a compulsão do desejo quase irracional e procura por esse tipo de “programa”, ao mesmo tempo que tem em si todos os preconceitos e repulsas por seus desejos e, por isso, se comporta como se fosse “dono” do corpo de quem está se oferecendo a ele. E porque está pagando, se acha no direito de ver o outro não como ser humano, mas como coisa que se usa e se descarta. Ao detalhar cada programa, Amara Moira expõe as contradições, os preconceitos e toda uma concepção de mundo a que sociedade conservadora leva os homens “de bem”, casados, “normais”, a buscar a satisfação de desejos que são considerados proibidos, interditos e pecaminosos nos corpos considerados não convencionais de travestis. Há poucas reflexões ao longo do livro, algumas pontuais e fundamentais, quando, por exemplo, ela diz que é a sociedade que joga travestis para a prostituição, ao não lhes dar oportunidades em outras profissões (“quem se consultaria com um médico travesti?”). Muitos poderão ler esse livro como apenas “relatos de putaria”, mas seria ótimo que, apesar disso, o lessem e buscassem o que se oculta em suas linhas e em suas histórias: um verdadeiro tratado do sexismo, do machismo, do preconceito, que poderiam ser dissecados longamente por psicólogos, sociólogos e outros profissionais dedicados à compreensão do ser humano, coisa que não cabe aqui nessa pequena e descompromissada resenha.