segunda-feira, 26 de maio de 2025

Suicídios exemplares, Enrique Vila-Matas

 Suicídios exemplares, Enrique Vila-Matas


Histórias de suicídios e de suicidas podem parecer, à primeira vista, um tanto mórbidas. O ato de tirar a própria vida sempre foi um ato arbitrário do suicida, que afeta a vida de forma indelevelmente dramática de todos os seus familiares e de todos que lhe queriam bem. No entanto, ao se propor a narrar o suicídio de seus personagens, através de vários contos, Enrique Vila-Matas vai não só desvendando motivações, mas também desmobilizando nosso pensamento contra esse ato humano e complexo que é a decisão de tirar a própria vida. Na verdade, a ação dos heróis desse livro cheio de imaginação, sutileza, inteligência e obsessão pelo suicídio acaba, de forma paradoxal, por ser na verdade uma elegia à vida, transformando, com uma certa dose de humor, característica do autor, as artimanhas de cada candidato ao suicídio em uma maratona de jogos que desafiam a nossa imaginação. Não deixe, portanto, o leitor que aprecia a obra do grande escritor cubano que é Enrique Vila-Matas, de evitar esse delicioso livro de contos apenas por seu título: não são histórias mórbidas, mas um desfile de vidas que nos desafiam a entender melhor os seres humanos, algo a que a boa literatura sempre nos leva. Gostei e recomendo.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Ritos de passagem, Willian Golding

 Ritos de passagem, Willian Golding


Início do século XIX. Edmund Talbot, um jovem promissor da realeza britânica, embarca numa longa viagem num velho navio de guerra adaptado para passageiros, rumo às terras da Austrália. Em forma de missiva a seu tio, como forma de entretê-lo, relata com mordacidade e humor típico do inglês o dia a dia naquele espaço exíguo, onde convivem a marujada e passageiros de todas as classes sociais, emigrantes quase todos eles em busca de melhores condições de vida em algum lugar da terra. Há, é claro, muita tensão entre eles, tanto entre os marujos e os passageiros, quanto entre os próprios passageiros. Talbot tenta, por curiosidade e para encher as páginas de seu diário, conviver com todas aquelas pessoas e acaba se envolvendo com uma das passageiras, uma bela mulher que parece ter caso com vários outros indivíduos. Também conhece e tenta se relacionar com um jovem reverendo, Colley, um indivíduo estranho e problemático, odiado pelo comandante e desprezado pela tripulação e pelos demais passageiros. A situação se complica quando esse reverendo morre após sofrer um trote da marujada, por ocasião da passagem do navio pela linha do equador, e suas exéquias são narradas com um misto de comiseração e humor negro, numa das páginas mais emblemáticas, e também mais engraçadas, do romance. Talbot vai tecendo considerações sobre a vida no navio, o tédio de longos dias de calmaria, as idiossincrasias de oficiais e marinheiros, seus conflitos e as diferenças e choques de personalidades, sempre num estilo elegantemente mordaz, o que torna a leitura do romance uma aventura ao mesmo tempo literária e humana, com observações sobre a sombria natureza dos seres humanos e seus ritos, principalmente os de passagem não só pela linha do equador, mas também pelas dificuldades da vida num espaço exíguo e insalubre de uma embarcação do início do século XIX, quando as noções de higiene e de convivência eram bastante precárias. Sem dúvida, uma obra prima do autor de “O senhor das moscas”, um dos romances mais emblemáticos da literatura inglesa do século XX.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Essa história está diferente – dez contos para canções de Chico Buarque, compilação de Ronaldo Bressane

Essa história está diferente – dez contos para canções de Chico Buarque, compilação de Ronaldo Bressane


Os dez contos compilados têm estilo, extensão e qualidade muito diversos uns dos outros. Há, no entanto, duas coisas que os unem: primeiro, claro, as canções de Chico Buarque e, em segundo lugar, a tentativa de uma literatura moderna e mais ou menos descolada da tradição do conto, buscando uma linguagem às vezes um tanto “modernosa”, com exceção, talvez, do moçambicano Mia Couto, que é moderno sem recorrer a truques de linguagem. Aliás, Mia escolheu a canção “Olhos nos olhos”, para nos dar sua reinterpretação do universo de Chico. Os demais contos são (e o/a leitor/a pode ter alguma ideia, remota, é verdade, do que o espera só com o título e a canção escolhida): “O direito de ler enquanto se janta sozinho”, de Alan Pauls, para “ela faz cinema”; “Lodaçal”, de André Santana, para “brejo da cruz”, que merece uma observação: é o mais longo dos contos e parece um jogo de cartas embaralhadas que vai nos enredando e confundindo e, às vezes, até mesmo nos irritando, mas, ao final, somos obrigados a confessar que é a obra que mais se aproxima do mundo complexo das canções de Chico, um belíssimo conto; “Carioca”, de Cadão Volpato, para a canção de mesmo nome; “Entrelaces”, de Carola Saavedra, para a canção “mil perdões”; “A calça branca”, de João Gilberto Noll, para “as vitrines”; “Feijoada completa”, de Luís Fernando Veríssimo, para a canção de mesmo nome, num conto divertido, mas que não é o melhor do autor; “Os fantasmas do massagista”, de Mario Bellatin, para “construção”; “A mulher dos meus sonhos e outros sonhos”, de Rodrigo Tresan, para “outros sonhos” e “Um corte de cetim”, de Xico Sá, para uma das mais belas canções do Chico, “folhetim”. Os autores, em geral, não “interpretam” as canções do compositor, mas criam e recriam mundos que nos aproximam ou nos levam de alguma maneira para o universo e as letras quase sempre metafóricas e concisas do compositor, lembrando sempre que letra e música, principalmente em se tratando de Chico, são indissociáveis e, por isso, eu aconselho ao leitor ou leitora do livro que ouça as músicas citadas, para entrar na atmosfera dos contos. Eu não sei se o Chico Buarque gostou do resultado, mas, em linhas gerais, eu gostei.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

A fantástica fábrica de chocolate, Roald Dahl

A fantástica fábrica de chocolate, Roald Dahl


Qualquer semelhança com “Alice no país das maravilhas” eu não creio que seja mera coincidência. As aventuras de Alice, eu as li faz pouco tempo, já adulto, portanto. E me diverti. Já não digo o mesmo do livro desse britânico nascido em Galles, considerado um clássico da literatura infantil. O enredo gira em torno de cinco crianças, conforme nos adverte a introdução do livro: Augusto Glupe, o menino guloso; Veroca Sal, a menina mimada; Violeta Chataclete, a menina que masca chiclete o tempo todo; Miguel Tevel, o menino que só vê televisão; e Charlie Bucket, o herói. Estereotipados, todos eles. Um pouco da história: Charlie é pobre, muito pobre, paupérrimo. Vive na periferia de uma grande cidade, num barracão minúsculo com seus pais e quatro avós já passados dos 90 anos, que não saem da cama. Passam fome. Próxima ao barraco da família, existe uma misteriosa fábrica de chocolates: ninguém nunca pode entrar lá e ninguém sabe quem fabrica para o dono misterioso os mais fantásticos chocolates do mundo, porque ele vive recluso, para evitar roubos de fórmulas pelos concorrentes. Um dia, Willie Wonka, esse capitalista misterioso, lança um concurso: há cinco bilhetes dourados dentro de cinco chocolates comercializados. Os cinco garotos que os encontrarem serão convidados, juntamente com seus pais, a visitar a fábrica e ganharão caminhões de produtos para o resto de suas vidas. Uma grande jogada de marketing, já que a venda de chocolates dispara. Os cinco garotos listados acima conseguem encontrar os bilhetes, sendo o de Charlie não só o último, mas aquele que é encontrado por um golpe de muita, muita sorte, já que não teria como comprar tantos chocolates e aumentar suas chances de ganhar, como os demais. Na visita à misteriosa fábrica de chocolates, os 14 convidados (as quatro crianças e seus pais e Charlie e seu avô de 96 anos), quatro crianças são misteriosamente punidas por suas características e vão desaparecendo em seus labirintos e em seus processos complicados de fabricação de chocolate, só restando, ao final, o grande ganhador, o menino pobre e sem vícios. A notar que os empregados da fábrica são os umpa-lumpas, anões resgatados de sua terra pelo senhor Wonka e, ao que parece, trabalham diuturnamente, sem qualquer menção a salários. O capitalismo em toda sua face mais negra, sobre a qual não há qualquer palavra no livro. E também não há complacência na punição dos quatro garotos, mesmo que, ao final, eles retornem, embora modificados. Não é uma questão de discutir se o livro é ou não “politicamente correto” (o que definitivamente ele não é, mas isso é o de somenos importância), mas o que me incomodou foi o sadismo do senhor Wonka, ao punir as crianças que não se enquadram no conceito de crianças exemplares que o herói, Charlie, tem, por ser pobre e não ter tido a mínima oportunidade de desenvolver qualquer uma das más qualidades de seus ricos companheiros de aventura, ou seja, ser guloso, mimado, mascar chicletes e só ver televisão. Enfim, apesar de todas as peripécias dos visitantes dentro do mundo fantástico da fábrica, cheia de truques e de labirintos, não me diverti, como esperava, o que, repito, aconteceu quando li as aventuras da heroína de Lewis Carroll. Fico em dúvida se presentearia hoje esse livro escrito em 1964 a algum filho de meu círculo de amigos.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Complô contra a América, Philip Roth

Complô contra a América, Philip Roth


A família Roth é composta do casal mais dois filhos, um de 6 anos e outro de 13, quando se inicia a narrativa do livro. Contada pelos olhos do menor, a história dessa família se passa no final dos anos trinta e começo dos quarenta do século passado. São judeus e moram numa pequena cidade dos Estados Unidos. O pai é corretor de seguros; a mãe, dona de casa; o irmão mais velho, um inspirado desenhista. Na Europa, Hitler começa a ameaçar o mundo, com invasões e perseguições a minorias, principalmente a judeus, mas a família se sente segura no país que venera um grande herói: Charles Lindbergh, o aviador que empreendeu o primeiro voo solitário da América à Europa e que é um defensor não só das ideias hitleristas, mas também da neutralidade dos Estados Unidos em caso de guerra no outro lado do Atlântico. Franklin Delano Roosevelt tenta, em 1940, um terceiro mandato à Casa Branca, mas é derrotado fragorosamente por Lindbergh. Aí começa pesadelo da família Roth e de todos os judeus que moram nos Estados Unidos. Como presidente, Lindbergh lança um programa de “espalhamento” da população judia, como forma de “neutralizar sua influência” na população estadunidense, com o apoio das empresas que têm empregados judeus, como o caso da família Roth, que é designada para se mudar para mais de mil quilômetros de distância, deixando para trás a vida enraizada que levavam em sua cidade natal. No entanto, o pai resiste a essa mudança, abandonando o emprego e indo trabalhar com os irmãos cerealistas, em transporte de alimentos para o mercado local. As condições de vida da família vão-se deteriorando pouco a pouco; famílias se separam; amigos de longa data são enviados para lugares distantes; a guerra explode na Europa e Hitler faz pressão para o governo dos Estados Unidos entre na guerra ao lado do Eixo. O presidente Lindbergh, embora admirador do ditador alemão, tenta manter o país neutro. Numa de suas viagens pelo interior, pilotando o seu avião – algo que ele fazia constantemente para conversar com as populações locais – desparece misteriosamente. Seu vice-presidente toma possa e aperta as medidas de perseguição aos judeus. Tudo isso e muito mais é contado com detalhes, na prosa inebriante de Roth. E tudo isso, como o leitor já percebeu, é uma distopia, uma narrativa ficcional que mistura fatos reais com a imaginação fértil do autor, para nos alertar sobre o perigo das ideologias nazifascistas que poderiam ter vencido a segunda grande guerra e poderiam ter mudado para sempre o curso da História, se realmente os Estados Unidos tivessem sofrido uma espécie de golpe de estado fascista, já que à época havia inúmeros cidadãos articulados em várias sociedade que defendiam – e talvez muitas ainda defendam – ideias fascistas de perseguição às minorias. Talvez por suas ideias “de esquerda”, Philip Roth, para mim um dos maiores escritores estadunidenses do século XX, não tenha sido agraciado com o prêmio Nobel, o que é uma injustiça, mas não é por isso que não podemos deixar de nos levar por sua prosa que, repito, é inebriante e nos conduz sempre de forma mais do que competente para mundos e ideias que só um grande escritor consegue. E à sua obra eu volto sempre que desejo ler um grande livro.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Eu canto e a montanha dança, Irene Solà

 Eu canto e a montanha dança, Irene Solà


Das montanhas da Catalunha nos vem esse romance singular, pela beleza poética e pela polifonia de vozes narrativas, tanto humanas quanto míticas, como animais, nuvens e espíritos, recontando e reconstruindo lendas dos Pirineus. Diz a lenda que, nessas montanhas, a par de sua beleza, a cada dez anos alguém morre atingido por um raio. E é o que acontece com o camponês e poeta Domènec de Matavaques, deixando viúva a Siò, obrigada a cuidar sozinha de quatro crianças e do velho sogro. A partir desse acontecimento, a morte trágica do protagonista (que desencadeia todo o rol de acontecimentos do romance) seguimos a trajetória de vida desses seres que vivem num ambiente complexo, onde as histórias de cada um se confundem, se entrelaçam e são teluricamente determinadas pelo ambiente agreste das montanhas e pelos seres míticos e lendários que habitam suas encostas: as bruxas que rodeiam o corpo do jovem atingido pelo raio; uma jovem corça que descobre motivos para correr e correr e correr, e como sobreviver na floresta; a cadela Lluna, neta de outra cadela que seguia o avô, Domènec, que acompanha os amores de sua tutora; a compra de um açougue pela família e muitas outras histórias, cheias de verdades humanas e contadas de forma poética e com grande sensibilidade. Talvez o romance mais poético que tenha lido nos últimos tempos, uma experiência literária que aguça o nosso prazer estético, quando percebemos mais uma vez a capacidade da literatura de nos levar para outros mundos, para outras realidades e, assim, fazer-nos mais sábios e mais humanos.