domingo, 30 de novembro de 2025

Predadores, Pepetela


Predadores, Pepetela


De Angola nos vem esse romance incrível, que se lê quase sem piscar, num estilo que só os bons contadores de história sabem fazer, como um Jorge Amado africano. Pepetela é o pseudônimo de Carlos Maurício Pestana dos Santos. A história que ele nos conta tem o condão de nos conduzir pelos eventos recentes de Angola, desde sua independência, em 1974 até o começo do século XXI. Seu “herói” é o ambicioso Valdimiro Caposso, que tem origem humilde, filho de enfermeiro e avesso à política, nascido no interior do país. Ainda jovem, vai para Luanda e começa como ajudante de um pequeno armazém num bairro pobre da capital, mas a instabilidade política das guerras pela independência leva o dono do armazém a fugir e deixar para ele a responsabilidade pelo armazém. Aos poucos, vai ampliando seus negócios, com seu incrível tino comercial e sua ambição sem limites, envolvendo-se, quando necessário, com políticos poderosos, para ampliar pouco a pouco sua fortuna, até tornar-se um dos maiores empresários de Angola, um individuo inescrupuloso e frio, até mesmo com a família. Assistimos a todos os golpes e negociatas que ele usa para subir, colocando em sua conta um assassínio, logo no começo do romance, quando já é poderoso e coleciona várias amantes, e acompanhamos suas relações com políticos, governantes, ministros e amigos endinheirados, até o começo de sua queda, já no final da história, um final aberto, que deixa para o leitor complementar com a sua imaginação a decadência do grande empresário. Há muita história nas indicações e nas entrelinhas do romance, mas o que fica para o leitor é a capacidade humana – até demasiado humana – de se aproveitar das situações mais críticas de um povo para estabelecer esquemas de corrupção que visam a seus interesses escusos, só a seus interesses, e que se lixe a população, o que é um tema universal. A destacar, além da fluidez da narrativa, o uso de palavras típicas do português falado em Angola, o que não chega a impedir a compreensão do texto, embora um glossário ao final do livro ajude o leitor. Há muitas vezes um humor ácido, mas consistente, revestido de ironia e de necessidade de levar a história de forma a que o leitor não “passe pano”, por assim dizer, nas falcatruas de VC, como muitas vezes aparece o nome de Vladimiro Caposso, um anti-herói – corrupto, assassino, insensível, inculto – mas, em termos literários, extremamente cativante. A literatura africana ainda precisa ser mais conhecida por nós, brasileiros, porque há muitos autores que nos surpreendem, não só os de língua portuguesa. Aliás, devemos tanto à África, que ler autores desse continente é só o mínimo que podemos fazer, para amenizar a dívida que temos para com esse continente de cores, cultura e história incríveis.

sábado, 22 de novembro de 2025

Sob o sol de Satã, Georges Bernanos

Sob o sol de Satã, Georges Bernanos


Católico, Bernanos está vinculado a uma visão do cristianismo semelhante à de François Mauriac e Graham Greene, que é uma resposta de fé ao tema central da relação entre o ser humano e o mundo na literatura contemporânea. O romance traduz, portanto, uma visão católica. Mas, paremos por aí com esse catolicismo. Explico: “Sob o sol de Satã” conta a história de um padre de uma pequena paróquia do interior da França, o padre Bernanos, que tem uma vida de sacrifícios, de pobreza – tanto física quanto mental –, de autopunição por uma fé exacerbada, com visões de Satã e de sua influência ou tentativa de influência em sua vida eclesiástica. Há um crime, cometido por uma garota de 16 anos seduzida por um medalhão de mais de 40 anos da aldeia; há uma tentativa de ressurreição de uma criança morta por meningite e pouco mais do que isso em suas mais trezentas páginas, em termos de ação. Mas, aí está a mão do grande escritor: literatura na veia, para delícia de quem gosta de longas e complexas incursões do narrador onisciente no pensamento e nas intenções e atos das personagens. E mais: todo o catolicismo do autor pode deixar quem é católico satisfeito com as possíveis possessões demoníacas e a vida de santidade do padre e seus possíveis milagres, mas também deixa margem a quem não acredita em nada disso em imaginar soluções menos místicas para toda a história, que tem uma pegada de muito psicologismo, de muita filosofia e de uma boa pitada de suspense. Enfim, o vazio filosófico do padre Donissan enche as páginas do livro com a boa literatura francesa que estamos acostumados a encontrar nos grandes autores, tanto do século XIX, quanto do século XX, o que torna sua leitura ao mesmo tempo um desafio a cada página e um prazer a cada parágrafo.

domingo, 16 de novembro de 2025

Paris, a festa continuou, Alan Riding

Paris, a festa continuou, Alan Riding


Declarada “cidade aberta”, Paris não resistiu com um único tiro à invasão das tropas hitleristas, em 14 de junho de 1940. A ocupação permaneceu até agosto de 1944. Durante esse tempo, a população conviveu com restrições, com toques de recolher, com perseguições, prisões e deportações de judeus e, claro, muito medo. Sabemos que houve muita gente que resistiu – e pagou com a vida; que houve muita gente que aderiu ou fingiu aderir – e sobreviveu. Mas, e a elite intelectual? Os escritores, os artistas, os poetas, os cineastas, os músicos, dançarinos e bailarinos? Como reagiram à ocupação alemã? Dessa gente complicada e pensante é que trata o livro de Alan Riding, e o título, nesse sentido, já é provocativo. Numa longa crônica da ocupação, ele vai relacionando, nome por nome, todos os que aderiram porque já eram fascistas e antissemitas (lembrando que o antissemitismo na França se exacerbou a partir do caso Dreyfus); todos os que se omitiram, por comodismo, por medo e por vários motivos particulares; todos os que se opuseram e até mesmo lutaram e pagaram com a vida, por suas convicções. Nesse cadinho de confusões e contradições ideológicas, “a festa continuou”, isto é, a vida intelectual e festiva da cidade logo retomou seu ritmo e a elite, principalmente a elite abastada, manteve seu ritmo de festas e salões, abastecidos pelo mercado negro ou pela boa vontade dos nazistas, em contraste com a penúria da população em geral. Imprensa, teatros, bares e restaurantes, casas de espetáculos continuaram funcionando, porque aos alemães era importante não só cooptar o máximo possível da intelectualidade parisiense, mas também tentar divulgar sua cultura entre os franceses, promovendo inclusive caravanas de escritores e artistas à Alemanha. E muitos aderiram a essa farsa, até mesmo com a desculpa de que conseguiam libertar amigos ou franceses e até mesmo alguns judeus presos nos campos de concentração nazistas. Baseado numa pesquisa rigorosa, o autor vai desfilando as desditas, as contradições, o comodismo, as lutas e o adesismo disfarçado ou declarado de toda uma elite cultural, até a libertação da cidade, em 1944, quando, então, uma nova e complexa situação se coloca para os artistas e intelectuais: a delação, prisão, julgamento e punição (até com fuzilamento) dos que colaboraram com o regime nazista. E muitos foram rigorosamente punidos, mesmo sob o protesto de alguns intelectuais, que reclamaram que sua classe foi até mais punida do que muitos empresários e operários que contribuíram muito mais com o fascismo. Enfim, um relato longo, preciso, sem julgamentos ou busca de heróis ou traidores, mas que deixa para o leitor a certeza de que esse momento eletrizante e crucial da história da França, especialmente de Paris, deve servir como exemplo e alerta para todos nós do perigo das ideologias de extrema direita e o estrago que elas fazem na mente das pessoas, nas relações sociais, e sua capacidade de destruição de uma sociedade.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O vento sabe o meu nome, Isabel Allende

O vento sabe o meu nome, Isabel Allende


Um romance escrito em estrutura de overlap: a autora conta a história da família Adler em Viena e depois a “esquece”, para nos falar de outras personagens, Leticia, Selena e Anita e, então, ele volta a falar dos Adler, agora para nos contar a história de Samuel e, assim, vão-se alternando as histórias, como num overlap de carros de corrida. Expliquemos: pense numa pista de carros. Cada vez que um carro passa pelo ponto de chegada, ele continua sua trajetória sem estar no campo de visão, mas continua em nossa imaginação. Sabemos que estão correndo, mas não sabemos em que condições. Cada vez que passa o número 1, por exemplo, recordamos os números 2, 3 e 4... Quando os elementos se intercalam (1...2...3...1...2...2...1 etc.), temos uma estrutura mais complexa de overlap. Dito isso, vamos a um breve resumo da história: os Adler são uma família judia em Viena, na famigerada “noite dos cristais”, quando a população de judeus é cruelmente perseguida e muitos são mortos. Só se salva o garoto, Samuel, enviado à Inglaterra, onde é criado como órfão. Ali ele cresce arredio, e se torna músico. Migra para os Estados Unidos, fascinado pelo jazz e casa-se com uma garota de “vida livre”, que lhe dá uma filha e um neto. Enquanto isso, Letícia tenta entrar nos Estado Unidos com sua filha de seis anos, Anita, fugida da violência de El Salvador, mas mãe e filha são separadas por uma nova política de migração, já no primeiro mandato de Trump. Selena Durán, uma jovem assistente social, se comove com a história garota e, com a ajuda de um advogado, Frank Angileri, tenta encontrar Leticia ou conseguir um visto de permanência nos Estados Unidos para a menina, quando, então, as vidas de todos os personagens vão-se entrelaçando até o final. Um tema, portanto, atualíssimo: a situação dos migrantes, incompreendidos e perseguidos por vários governos em todo o mundo, numa história humana e extremamente tocante, narrada com a sensibilidade e a maestria com que essa grande autora chilena nos brinda sempre em seus livros.