terça-feira, 26 de setembro de 2023

Um estranho numa terra estranha, Robert Heinlein

Um estranho numa terra estranha, Robert Heinlein


“Grocar”: essa palavra, inventada pelo autor para resumir a forma marciana de ver e entender o mundo e tudo quanto a ele se relaciona, percorre repetidamente, até à exaustão, as mais de setecentas páginas do livro. O significado aproximado é “entender, compreender algo profundamente, de tal forma que a coisa ou o conceito apreendido passe a fazer parte do ser, como a água que bebemos, que se assimila ao nosso organismo”. Aliás, a água é outro elemento mítico e repetido durante toda história: partilhar a água com alguém é tornar essa pessoa mais do amigo, um irmão fiel para sempre. Dito isso, é preciso, antes de continuar comentando o livro, dizer que foi lançado em 1959, quando o planeta Marte incendiava a imaginação das pessoas com civilizações avançadas e, hoje sabemos, improváveis. Então, essa é a história de um humano filho dos primeiros humanos que chegaram ao planeta vermelho. Criado por marcianos e tendo assimilado a cultura deles, esse humano é trazido à Terra, onde é mantido sob custódia do governo estadunidense. Resgatado por uma enfermeira e por um jornalista, Valentine Michael Smith começa a entrar em contato com a cultura terráquea e compreender seus estranhos costumes, tentando “grocar” a forma de viver dos humanos, a cuja raça ele tem dificuldade de saber-se pertencente. No entanto, esse ser estranho numa terra estranha tem, além de alguns poderes extraordinários do povo marciano, a riqueza enorme herdada de seus pais, o que o torna, inclusive, uma espécie de “dono” do próprio planeta Marte e de todos as suas riquezas, embora isso, para ele, não tenha nenhum valor. Está mais preocupado em mudar os valores dos terráqueos, para uma vida de amor, respeito e liberdade total. Para isso, funda uma espécie de religião, o que vai incomodar sobremaneira as demais seitas existentes. É esse grito de liberdade, visto até mesmo como libertinagem, que faz do livro uma espécie de manifesto adotado pelo movimento hippie na década de 70, para escândalo dos moralistas de plantão. Enfim, embora datado, marcado por ideias e conceitos de uma época, é um livro para se ler com o prazer das grandes obras de ficção científica, pois discute temas ainda bastante atuais, em termos de aprofundamento do conhecimento do ser humano

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Rota 66 – A história da polícia que mata, Caco Barcellos

 Rota 66 – A história da polícia que mata, Caco Barcellos



Em abril de 1970, da fusão da Força Pública do Estado de São Paulo com a Polícia Civil surgiu a Polícia Militar. O objetivo dessa fusão era dar instrumentos legais e materiais para o combate ao “inimigo” do momento, os “subversivos”. Portanto, a PM tem no DNA o princípio da Lei de Segurança Nacional da ditadura, que vê em qualquer cidadão que não se enquadre na ideologia oficial da época como inimigo, o chamado “inimigo interno”. Em agosto do mesmo ano, foi criada a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), com o objetivo de aprimorar as operações de combate ao crime, o tráfico de drogas e atuar em sequestros, roubos a bancos e outras situações de complexidade e perigo. Mas não foi o que aconteceu. Formou-se dentro da ROTA um verdadeiro “esquadrão da morte”, com táticas de extermínio que se tornaram notórias. É esse vasto e estarrecedor rastro de sangue que o repórter Caco Barcellos estende ao olhos do leitor, em relatos aterradores e assustadores, principalmente no período de 1975 a 1992, ano da publicação do livro. A primeira história, ocorrida em 1975, narra com detalhes a perseguição e o assassinato de três jovens da classe média alta do Jardim América, em São Paulo. Resumo os fatos: esses jovens de família, de respectivamente 17, 18 e 21 anos, frequentadores dos clubes da elite paulistana, resolveram, numa madrugada, roubar o toca-fitas do carro de luxo de um de seus companheiros de farras, porque este devia dinheiro de jogo a um deles e estava relutando em pagar. Nessa estúpida tentativa de roubo, são surpreendidos por acaso por uma viatura da ROTA. Fogem. Inicia-se uma complicada perseguição de “bandidos perigosos” pelas ruas do Jardim América. O motorista do fusca era o jovem menor de idade, extremamente hábil ao volante e conhecer das ruas do bairro, o que dificultava a perseguição dos policiais. Pediram reforços e dezenas de viaturas se envolveram na operação. Com o corpo para fora da viatura (atitude que era uma marca da ROTA), um dos policiais metralha o carro dos “bandidos’, atingindo um dos rapazes. O fusca bate numa árvore e os dois rapazes sobreviventes saem de mãos para cima, gritando para não atirarem. Tendo a porta da viatura como escudo, metralham os rapazes, jogam os corpos no “chiqueirinho” e dirigem-se para o Hospital das Clínicas, onde obrigam os médicos a receberem os cadáveres, coisa proibida: deviam ser levados para o IML, aliás, não deviam ter sido retirados do local do crime, já que estavam sabidamente mortos, para não impedir o trabalho da perícia. Mas esse era o “modus operandi” da Rota. Adulterar a cena do crime, colocar armas nas mãos dos mortos, levá-los a hospitais como desconhecidos, sem documentos, encenando uma “ação humanitária” depois da forjada troca de tiros. Ao descobrirem a identidade dos jovens, percebem que fizeram besteira e o caso tem enorme repercussão na imprensa. No entanto, os assassinos dos três jovens só foram julgados oito anos depois, pela própria justiça militar, e... inocentados! Esse o fio puxado pelo autor do livro: se isso acontece com rapazes brancos, ricos, em bairro nobre, o que não fazem esses policiais na periferia, contra jovens negros ou pardos, e pobres? Os números são estarrecedores. Não vou citá-los aqui, porque dão engulhos. A matança é mais cruel do que muitas guerras, no mesmo período investigado. E pior: mais de 60% dos mortos são realmente jovens, negros ou pardos, pobres da periferia e... pasmem! – sem passagem pela polícia, ou seja, sem terem cometido crimes no Estado de São Paulo. Mortos apenas porque ou eram meramente suspeitos ou por “deduragem” de comerciantes amigos dos policiais, por vingança, ou por terem cometido pequenos delitos. A longa história desses matadores, muitos deles com mais de 30 ou 40 crimes (o repórter faz um ranking dos dez mais), não tem fim, mas o livro se encerra com o assassinato do jovem que se tornou famoso por um filme, o Pixote. E a PM de São Paulo continua matando. Basta seguir os noticiários policiais. Os crimes são tão normatizados, que somente alguns de grande repercussão ainda chegam à mídia, como aconteceu recentemente no caso da vingança dos policiais militares contra uma comunidade da cidade litorânea do Guarujá, porque um deles ali foi assassinado por traficantes. Mataram, até a data de hoje, 17 de setembro de 2023, 28 pessoas. Quantas tinham realmente passagem pela polícia ou relação com o crime? E polícia que mata – poderia dizer o repórter – também é polícia que morre. A “vendeta” ocorre dos dois lados, num processo de realimentação que torna o círculo da morte algo muito mais vicioso do possamos imaginar. Enfim, se você ainda confia na Polícia Militar, leia o relato de Caco Barcellos, e ponha suas barbas de molho, porque enquanto a polícia tiver treinamento militar, enquanto existir polícia militar, a matança não vai parar. E nunca se sabe quem pode ser a próxima vítima. Acha que estou exagerando? Então leia, leia e tire suas próprias conclusões.

domingo, 10 de setembro de 2023

Olualê Kossola – as palavras do último homem negro escravizado – Zora Neale Hurston



Olualê Kossola – as palavras do último homem escravizado – Zora Neale Hurston


Estados Unidos, 1927. Zora Neale Hurston, uma socióloga e estudiosa do folclore novaiorquina, viaja até a comunidade de Plateu, no Alabama, perto da cidade de Mobile, para entrevistar um homem negro, Cudjo Lews, de 86 anos, considerado o último homem escravizado ainda vivo. A história da escravização de seres humanos africanos, de longa tradição, tem sempre a narrativa dos escravizadores e nunca a palavra dos que sentiram na pele a captura, a longa viagem para destinos desconhecidos e ignorados pela chamada passagem do meio, até o continente americano. Durante vários meses, Zora Hurston teve a oportunidade de ouvir o relato de Cudjo, ou Olualê Kossola, seu nome africano, sobre o ataque dos comandados do rei do Daomé, que tinha negócios com os brancos, para capturar jovens – homens e mulheres – e vendê-los como escravos. Isso aconteceu em 1860, quando ele tinha19 anos e a proibição de tráfico de pessoas nos Estados Unidos já completava 50 anos, mas ainda ocorria de forma esporádica, por navios que burlavam a lei. Nesse ano, em conluio com Timoty Meaher, um senhor de escravos que queria manter o tráfico transatlântico, William Foster construiu o “Clotilda”, um navio para transportar “carga de contrabando” e partiu para a África. Obteve do rei do Daomé 110 escravizados, entre homens, mulheres e crianças. Burlando a lei, conseguiu levá-los para os Estudos Unidos e distribuí-los entre os fazendeiros de Mobile, ficando com uma parte deles. Após a guerra de secessão, eles foram libertados, tentaram convencer os brancos a levá-los de volta à África, mas a viagem era muito cara, acima de suas posses. Com o trabalho, esses africanos obtiveram dinheiro suficiente para comprar terras e fundar a primeira cidade negra dos Estados Unidos, a Africatown, próxima de Mobile. Cudjo Lewis, o Olualê, foi um dos líderes dessa construção. Seu encontro com a autora do livro, em 1927, permitiu que ele lembrasse como foi capturado – uma narrativa extremamente impactante -, como foi a viagem e toda a sua vida até aquela data. Ele se casou, teve cinco filhos, quatro homens e uma mulher. A garota faleceu aos 14 anos. Os outros filhos sofriam muita perseguição por parte da comunidade negra nascida nos Estados Unidos e já aculturada, porque eram filhos de africano e, por isso, chamados de selvagens – esse um capítulo também complicado para a história negra, o fato de não terem acolhimento entre seu povo. Pelo fato de reagirem a essa perseguição, dois foram mortos e um deles foi preso, acusado de assassinato. O quarto filho homem casou e teve uma filha, mas também desapareceu. À época das entrevistas Olualê era viúvo, pois a esposa também falecera, depois de muito sofrimento pela falta dos filhos, e vivia com a nora e uma neta. As narrativas de Olualê são registradas exatamente como ele as contou para a autora, com a linguagem típica do africano que assimilou a língua inglesa a seu modo, como aconteceu também no Brasil, com os negros que falavam um português arrevesado, com uma gramática especial. Por essa razão, as editoras da época não quiseram publicar o livro, o que só aconteceu mais de 50 anos depois. É uma das narrativas mais impressionantes que se possa ler, a voz daqueles que nunca tiveram voz para contar suas histórias, num apagamento criminoso de fatos criminosos pela cultura branca, pela primeira e talvez a única vez que alguém que passou pelo processo de captura, quando presenciou seu povo ser degolado e dizimado pelos guerreiros e guerreiras do rei do Daomé, e depois ser afastado de sua cultura, de sua língua, de seus hábitos e costumes, para ser levado para um lugar completamente desconhecido e longínquo, sem qualquer possibilidade de retorno, essa pessoa ainda se lembrar – não esqueçamos que era um jovem assustado de 19 anos – de muitos detalhes e conseguir – com toda a emoção do mundo – recriá-los e contar a uma jovem pesquisadora, que lhe conquistou a confiança. Sem dúvida, um documento importantíssimo para a cultura negra, para compreensão de certos fatos obscuros, como a escravização de negros por outros negros, o preconceito até mesmo de negros contra negros, por imposição de uma situação de vulnerabilidade e de sobrevivência. E mais: a capacidade de resiliência de seres humanos desumanizados pela imposição de leis que os nivelava a animais, mesmo depois da libertação, e que até hoje são perseguidos e assassinados, simplesmente porque a sociedade que os subjugou não tem capacidade de compreender que são seres humanos dignos de terem a mesma oportunidade de viver como cidadãos e não como seres degradados de segunda classe. E isso devia ser compreendido não apenas nos Estados Unidos, mas, e principalmente, aqui também, nesse nosso país preconceituoso e racista. Eu achei que já sabia de muita coisa sobre a escravização de africanos, mas esse livro – a voz de um escravizado – me deu outra dimensão de um problema que nossa “civilização” (com todas as aspas) criou e ainda não soube equacionar.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Cinema sem pipoca, Marco Antônio Ribeiro de Castro

Cinema sem pipoca, Marco Antônio Ribeiro de Castro


A maior metrópole da América Latina, São Paulo, ainda é, felizmente, uma cidade provinciana, mesmo diante da pujança de seus números. Há inúmeros eventos, a maioria não registrados oficialmente, que humanizam essa selva de pedra, para usar a desgastada metáfora que a define. Há, por exemplo, na cidade, inúmeros grupos, grupinhos e grupelhos de pessoas que se reúnem periodicamente em torno de uma ideia, de um gosto, de um tema. Isso é algo que parece vir de tempos de antanho, de quando essa cidade era ainda – como, em muitos aspectos, continua a ser – uma cidade provinciana, quase caipira. A Semana de Arte Moderna de 22, por exemplo, nasceu de um grupelho de jovens da burguesia que se reuniam periodicamente num apartamento, em torno de uma jovem normalista, a famosa Miss Ciclone (consultem as biografias de Mário e Oswald de Andrade...). E os rapazes da Semana de 22 inspiraram a existência de inúmeros outros grupos de artistas modernistas, não só em São Paulo, como os rapazes de Cataguases, em Minas Gerais, por volta de 1928,que se reuniram em torno de uma revista chamada “Verde” e nos legaram poetas excelentes. Aliás, até mesmo a história do Brasil está recheada de grupos em torno de ideias, resultando muitas vezes, essas reuniões de poucos elementos, em fatos históricos, como revoltas e repressão, como a Inconfidência Mineira – um grupelho de intelectuais que incomodou a coroa portuguesa, e todos sabem no que deu. Mas, voltemos a São Paulo: há na cidade esse movimento de formiguinhas, de grupos de poucas pessoas aficionadas por um tema, milhares, talvez, a se reunir em torno de uma ideia, de um hobby, como literatura, cinema, artes em geral, culinária, música etc., em sessões cuja finalidade seja apenas degustar um bom vinho, ou para assistirem, por exemplo, a gravações de ópera; ou para discutirem teatro (ah, que saudade de Chico de Assis e seu Seminário de Dramaturgia do Arena, o SEMDA!); para declamarem poesia e ouvir música (ah!, o Sarau da Casinha, de minha amiga Eliana Iglesias, que não está mais na casinha, mas ainda se reúne mensalmente na Cantina do Piolim, na rua Augusta!); para escrever contos (ai! mais uma lembrança: o Grupo de Contistas de São Paulo, que se reunia na casa da saudosa amiga Cármen Rocha!); enfim, acho que muitos dos poucos leitores dessa resenha deverão ter participado ou ainda participam de algum grupo, ou de uma tribo, da cidade de São Paulo. E como isso, esse afã por cultura, por troca de conhecimentos, por se reunir com pessoas interessantes e com alguns interesses em comum humaniza a selva de pedra! Todo esse blábláblá para falar de um livro do qual não há muito o que falar: “Cinema sem pipoca” de Marco Antônio Ribeiro de Castro, fruto de um grupo de amigos aficionados por cinema, que se reúnem há muitos anos, periodicamente, para assistirem a filmes. Gostam tanto de cinema, que não admitem nem que se coma pipoca durante as sessões, daí o nome do livro. O autor, autodenominado curador do grupo, escreve a resenha dos 103 filmes vistos pela turma, com comentários relacionados ao diretor, aos atores, aos detalhes de produção etc., às vezes até mesmo com alguma pitada de fofoca. É um trabalho feito com a paixão dos amadores, e não com o olhar de críticos e entendidos, e, por isso mesmo, uma obra que se lê com o olhar de quem gosta de cinema e, por isso, merece estar à disposição, na estante, para uma consulta, sempre que se quiser lembrar do nome de um bom filme, de seu diretor ou de seu enredo.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Sagrada família, Zuenir Ventura

 Sagrada família, Zuenir Ventura


Melodrama não é um drama meloso, que nos leva às lágrimas. Mas, tecnicamente falando, melodrama é drama que inverte o fluxo narrativo do palco para a plateia, ou seja, o drama que deixa lacunas que permitem ao espectador preencher essas lacunas com sua imaginação. Isso, em teatro. E também no cinema. Alfred Hitchcock era o rei dos melodramas. Ou seja, nesse tipo de drama, as personagens nunca são exatamente aquilo que parecem, elas nos enganam. O enredo nos leva também a julgamentos falsos, a imaginar coisas que não existem ou são diferentes daquilo que realmente são. Este livro, “Sagrada família”, se fosse teatro, seria um melodrama. Como é literatura, é só uma história aparentemente inocente de uma família do interior. Cenário: Florida, uma cidade fictícia da região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Ali, o narrador, no começo da história, com apenas 9 anos, ao acompanhar sua tia Nonoca, uma viúva de 37 anos, à farmácia, para tomar uma injeção, descobre por acaso que há muito mais coisas envolvidas nessa simples injeção. Ameaçado a não contar nada a ninguém, o narrador vai acompanhando a vida das duas filhas de sua tia, Cotinha e Leninha, a partir de seus 14 e 15 anos, seus namoros, suas paixões, seus amores platônicos, suas decepções, até o casamento de Cotinha com um policial de grande beleza e as consequências dessa união. E também, com uma certa delicada ironia, vai nos revelando todas as fofocas de uma sociedade extremamente conservadora e hipócrita de uma cidade do interior, como centenas de outras, por esses brasis a fora, na década de 40, em plena ditadura getulista. A história dessas duas moças só terá um desenlace melodramático 50 anos depois, quando o narrador fica sabendo de fatos até então mantidos em segredo. Um romance curto, para se ler quase que de um só fôlego, num fim de semana, mas muito prazeroso, pelo estilo leve e direto do autor, que nos revela ser mais ou menos autobiográfico: para evitar problemas familiares, trocou nomes e inventou episódios e romanceou outros.

domingo, 3 de setembro de 2023

As aventuras de Augie March, Saul Bellow


As aventuras de Augie March, Saul Bellow


Na Chicago de 1920, o menino Augie convive com uma família meio disfuncional: a mãe, cujo marido sumiu no mundo, subjugada pela estranha avó, dois irmãos, sendo um deles, o mais novo, deficiente mental. A depressão do final da década leva o jovem, nos anos trinta, a passar por inúmeros empregos, desde acompanhante de uma rica senhora mais velha a ladrão de livros e sindicalista. E é justamente como acompanhante dessa senhora, numas férias em um balneário, que conhece duas irmãs de família aparentemente rica. Apaixona-se perdidamente por uma delas, mas é a outra, chamada Thea, que se declara a ele e diz que, embora estejam indo embora, ainda vai encontrá-lo algum dia. Os anos passam, ele se envolve com os negócios do irmão mais velho, que está agora casado com uma herdeira de uma família rica, e quase se casa com uma das jovens dessa família. É então que reaparece a garota do balneário, Thea, e os dois, apaixonados, encetam, uma louca viagem para o México, durante a qual ela compra uma águia e se dedica, junto com Augie, a tentar domesticá-la. Numa cidadezinha turística do México, onde vivem, ele acaba se envolvendo com outra mulher, Charlotte, o que leva ao rompimento com Thea. Volta aos Estados Unidos e, tempos depois, reencontra Charlotte, com quem se casa. Ela é atriz e viaja muito. Ele, por sua vez, consegue se alistar na marinha mercante, durante a segunda guerra. Durante uma viagem, o navio afunda e ele fica muitos dias à deriva, numa balsa, com outro sobrevivente, sendo resgatado por um navio mercante da Inglaterra. Depois de meses num hospital em Londres, consegue voltar para a mulher nos Estados Unidos e enceta negócios com um negociante indiano, o que o leva a viajar para vários países. Essa, em síntese, as aventuras de Augie March, num dos livros mais impressionantes da literatura estadunidense, tanto no aspecto formal, quanto no aspecto narrativo. Formalmente, a tradução, qualquer tradução, não nos possibilita comentar os ingredientes linguísticos propostos pelo autor, como o uso de uma linguagem mais próxima do popular, com expressões e vocábulos típicos de classes sociais excluídas da academia. Já o aspecto narrativo, esse nos surpreende pela capacidade inventiva e criativa, através de um narrador-personagem que encarna o anti-heroísmo dos cínicos e desiludidos, levados muito mais pelas circunstâncias do que por uma vontade que o aproxime do protagonista clássico. Além disso, a galeria impressionante de personagens que povoam a narrativa, quase uma novela, com vários núcleos dramáticos, tornarão a leitura das aventuras desse não-herói uma experiência realmente inesquecível, para as qual não faltará fôlego a nenhum leitor para vencer as mais de setecentas páginas do livro.