domingo, 29 de outubro de 2023

A resistência, Julian Fuks



A resistência, Julian Fuks


Cenário: Buenos Aires, final dos anos 70. Uma ditadura feroz persegue, prende, mata e desaparece com os corpos de milhares de cidadãos. É preciso resistir. Um casal de classe média, intelectuais e atuantes ambos na área da medicina, não consegue engravidar. Recorre à adoção de um menino recém-nascido, filho de uma “italianinha”, que é tudo o que sabem sobre a mãe. Exilados no Brasil, em São Paulo, têm mais dois filhos naturais, um casal. O narrador do livro é esse segundo filho. Abre a narrativa afirmando que seu irmão é adotado. E que nada se pode fazer a respeito. A partir daí, dúvidas e questionamentos não apenas sobre a situação do país de origem de seus pais, mas também sobre o próprio processo de adoção. As relações familiares em torno do menino, do adolescente e do adulto adotado se tornam complexas, já no filho adotado há, então, a resistência em torno de sua própria condição. A emoção prevalece em torno da situação em que se colocam os filhos legítimos em relação ao irmão adotado e o desconforto desse irmão, que às vezes se vê não devidamente acolhido. A sutileza e a inteligência com que o autor trata a questão toca profundamente nossa sensibilidade, já que o tema é não só complicado, mas também se refere a sentimentos humanos extremamente delicados. Um livro curto, apenas pouco mais de 150 páginas, mas um oceano de ideias, sentimentos, reflexões, ao abordar relações familiares que repercutem em milhares de outras famílias que lidam com a mesma situação. A adoção é um ato de amor, para usar um clichê, mas pode trazer consigo um cadinho de emoções, de dúvidas, e até mesmo de problemas, que precisam ser pensados, sentidos, meditados e resolvidos, rompendo qualquer tipo de resistência, para prevalecer a união e o bom senso, ao contrário da resistência necessária aos regimes totalitários e assassinos. Não sei se foi essa a mensagem desejada pelo autor, mas é, pelo menos para mim, a mensagem que ficou, quando acompanhei com emoção cada linha, cada parágrafo, cada capítulo desse excelente livro.


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A consciência de Zeno, Italo Svevo

 A consciência de Zeno, Italo Svevo


Consciência pode ser a capacidade que tem o ser humano de compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior. Mas, pode ter também o significado de percepção que o ser humano possui daquilo que é moralmente certo ou errado. Zeno Cosini vive em Trieste, cidade italiana quase fronteiriça com a Áustria, no final do século XIX e início do XX. O vício do tabagismo leva-o a buscar tratamento psicanalítico, na tentativa de largar o cigarro. Seu analista sugere que ele registre suas memórias e sua vida, numa espécie de autobiografia, em busca do conhecimento de si mesmo. Essa a consciência que Zeno busca despertar. Mas, também, em sua trajetória de comerciante, quando se apaixona por uma das três filhas de outro comerciante mais velho e se vê rejeitado e acaba por se casar com uma outra irmã, provocando em si mesmo sentimentos complexos de amor e ódio, de fidelidade e traição, de práticas de negócio nem sempre pautadas pela melhor forma, Zeno também lida com aspectos morais típicos de um anti-herói disfuncional e burguês do romance do início do século. O desconforto em relação ao mundo e a capacidade de ultrapassar os obstáculos que se apresentam, para alcançar grandes feitos, acompanham os heróis clássicos, desde tempos de narrativas imemoriais. Até Cervantes. Dom Quixote, com sua inadaptação ao mundo, luta com gigantes imaginários, desvendando as misérias e a consciência interiores do ser humano renascentista, inaugurando o anti-herói moderno. O realismo, mesmo buscando resgatar os princípios gregos de heroicidade e de realidade, nunca jogou no lixo a luta interior de seus heróis, seus dilemas éticos e filosóficos. Italo Svevo, contemporâneo e amigo de James Joyce, havendo mesmo entre eles uma admiração recíproca, comunga com o inglês a capacidade de trazer para a literatura toda a disfuncionalidade e toda a complexa teia de dilemas morais, éticos e filosóficos dos humanos do século XX, anti-heróis que desbravam para nós, seus leitores, o fascínio da mente humana e de suas contradições, despertando, portanto, novas consciências diante de um mundo cada vez mais complicado, não só para o indivíduo, mas também para todas as sociedades e povos e nações, que não se entendem e vivem em pé de guerra. Talvez por isso, seja “A consciência de Zeno” considerado um dos melhores romances italianos de todos os tempos e um dos grandes romances do século XX. Não é uma leitura “de fim de semana”, mas um livro para se degustar lentamente, parágrafo por parágrafo, linha por linha, as suas quase quinhentas páginas.


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Salvar o fogo, Itamar Vieira Junior

Salvar o fogo, Itamar Vieira Junior



Manto tupinambá. Costurado pelas mulheres indígenas, com penas de vários pássaros, colhidas na floresta, o manto cerimonial era usado pelos homens em ocasiões especiais, e devia dar ao seu possuidor um grande poder. As penas coloridas deviam ser cosidas uma a uma, num mosaico de cores variadas. Assim também, Itamar Vieira Junior vai juntando pacientemente os relatos de vidas de uma família numerosa da vila Tapera do Paraguaçu, no recôncavo baiano. O centro, porém, da narrativa é Luzia, moça estuprada ainda muito jovem, na qual nasce uma corcunda que a torna uma espécie de maldição ou feiticeira capaz de botar fogo em casas e pessoas, segundo os preconceitos da aldeia, cujo povo a persegue a pedradas, às vezes, pelas ruas tortas e miseráveis, como culpada de vários melefícios. A narrativa começa com uma mulher – que incialmente não sabemos quem é – dando à luz um menino nas águas do rio Paraguaçu, salvo da morte por uma das irmãs, filha do quase sempre ausente Mundinho, entregue à lida diária, à bebida e às mulheres. Da família de Mundinho, só ficaram mesmo na Tapera o “Menino”, batizado com o nome significativo de Moisés – agora também órfão de mãe – e Luzia, que o cria e educa com muita dificuldade. Para isso, ela se torna lavadeira do mosteiro da cidade, cujos padres (na verdade, monges) dominam a população local, não só em termos de fé, mas também economicamente, exigindo dos moradores o pagamente anual de um imposto para a igreja (que, significativamente também, Mundinho se recusa teimosamente a pagar). A proximidade com os padres permite que Luzia garanta a Moisés, o “Menino”, que comece a estudar e possa ter uma vida melhor. Mas ele interrompe bruscamente os estudos e também parte a cidade grande, levando as economias de Luzia. Motivos muito fortes provocaram esse rompimento. Motivos que marcarão profundamente a vida de toda a família. A narrativa ganha foros de catarse, de uma espécie de vingança que, se não alivia todo o sofrimento de Luzia e de suas irmãs e irmãos, leva o leitor ao regozijo de chegar ao final do livro pelo menos não tão amargurado, através de eventos que se vão revelando pouco a pouco, na escrita lenta e detalhista do manto tupinambá tecido pelo autor. Um resgate catártico, repito, sem dúvida, de nossas populações afro-indígenas desprezadas e espezinhadas ao longo de séculos de dominação religiosa, que lhes destrói a cultura e os costumes tradicionais; de dominação política e econômica, que os mantém em condição subumana, no Brasil profundo, de vilas e vilarejos esquecidos pelo poder público, mesmo em tempos muito recentes, já que a história se passa nos trinta e poucos anos finais do século passado. Confesso, sem constrangimento, e até com muita satisfação: um grande livro, sem dúvida nenhuma. Seus – poucos, pouquíssimos – defeitos literários não empanam a efusão dos meios literários ao surgimento desse autor que, esperamos, nos brindem com outras joias preciosas, que nossa cultura anda precisando, e muito, de bons autores que se debrucem a trazer à tona a cultura de nosso povo, seja dos escravizados, seja dos povos originários, que formam um cadinho vigoroso de esperança de uma nação enfim livre de racismos e preconceitos.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O Pintassilgo, Donna Tartt

 O Pintassilgo, Donna Tartt


Para não desanimar o possível futuro leitor do livro, devo começar dizendo que o livro é, sim, muito bom. Chega a empolgar, em alguns momentos. Mas, não é uma leitura muito fácil, pelo menos no seu primeiro terço, que se arrasta um pouco, embora seu começo seja promissor, em termos de trama e suspense. Como é um romance longo, muito longo, cheio de reviravoltas e mistérios, além de detalhista e lento, vamos dar apenas uma ideia do enredo, para conseguir fazer algum comentário que tenha sentido. Theodore Decker, Theo, tem 13 anos, vive apenas com a mãe (o pai sumiu no mundo), em Nova Iorque. Vão ambos visitar um museu porque ela deseja ver em exposição, ao vivo, uma pintura, cuja reprodução numa revista a atraíra sobremaneira, de um holandês do século XVII, chamado Carel Frabitius (“O pintassilgo”). Ocorre um atentado terrorista, uma explosão. Theo, que naquele momento, estava um pouco distante da mãe, atraído por uma garota acompanhado de um idoso, sobrevive. Esse idoso lhe dá um anel e um endereço, antes de morrer. O garoto consegue sair dos escombros, mas é tentado a levar consigo o quadro. Órfão, rejeitado pelo avô e sua nova mulher, é meio que adotado por uma família rica, amiga da mãe. No entanto, o pai aparece e o leva para Las Vegas, onde conhece o único amigo na cidade, Boris, um jovem russo cujo pai já o levou a viver em inúmeros países, por isso fala várias línguas. Desajustados ao ambiente, mergulham nas drogas e na bebida. Quando o pai de Theo morre num acidente, ele resolve fugir de Vegas, voltar para Nova Iorque e procurar o amigo restaurador de móveis antigos, cujo endereço lhe fora dado pelo pai da menina que o encantara no museu. A partir daí, a história acompanha – narrada pelo próprio Theo desde o início – a vida de adolescente e depois de adulto da personagem, arrastado ao mundo e submundo da arte, circulando com desenvoltura tanto pelo labirinto da loja de antiguidades quanto pelos salões de endinheirados que lhe compram os móveis recuperados pelo restaurador. Se a fase de Vegas é um tantinho tediosa e outro tantinho inverossímil, serve, no entanto, de base para o thriller de mistério e reviravoltas que levam a personagem a caminhos surpreendentes e, ao leitor, a não despregar mais os olhos do livro, até o final de suas mais de setecentas páginas. Às vezes, falta fôlego, para acompanhar a narrativa vibrante e complexa de Donna Tartt, mas vale, sim, a pena enfrentar as páginas desse livro fascinante e descobrir, com ela, os meandros do submundo das artes e suas armadilhas. Uma última observação: não sei se intencional ou não, já que a autora não estabelece nenhuma ligação explícita entre os dois fatos. A morte da mãe de Theo numa explosão num museu de Nova Iorque no século XX, aos trinta e poucos anos, tem uma relação sutil com a morte de Fabritius, o pintor, aos 32 anos, no século XVII, resultado de uma explosão de um depósito de pólvora em Delft, na Holanda, o que destruiu praticamente toda a sua obra, restando apenas 20 e poucos quadros, dentre eles “O Pintassilgo”, que é praticamente o leit-motiv de todo o enredo do romance de mesmo nome.