Enterrem meu coração na curva do rio, Dee Brown
Os Estados Unidos da América constituíram-se como nação em cima do solo encharcado do sangue dos indígenas que viviam no território de onde partem hoje os poderosos exércitos que se julgam donos e xerifes do mundo, com direito a destruir e subjugar outros povos que não compartilhem de sua ideologia. Portanto, está no DNA dos estadunidenses o prazer da destruição, a compulsão orgástica por batalhas e pelo sangue “inimigo”, seja ele quem for. No primeiro momento de conquistas, esse “inimigo” foram os indígenas, as milhares de tribos que viviam no seu imenso território, caçando búfalos ou guerreando entre si, mas viviam e sobreviviam de acordo com seus códigos de caça e de guerra. Até que chegaram os homens brancos e sua ganância. O processo de genocídio dos povos indígenas começou no século XVI e culminou no século XIX, principalmente na sua segunda metade, quando a famosa cavalaria estadunidense promoveu os maiores massacres de indígenas, principalmente de velhos, mulheres e crianças, para orgulho de nosso atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, que já manifestou sua admiração por esse feito, criticando o nosso exército por não ter tido a mesma competência. Mas, voltemos aos massacres e à dizimação desses povos promovida na segunda metade do século XIX, quando – ressaltemos bem este ponto – os Estados Unidos já eram uma nação razoavelmente poderosa e a caminho de se tornar “civilizada”, ou seja, não estamos mais nos primórdios do encontro de duas civilizações que se estranham na época da conquista das Américas pelos europeus, nos anos quinhentos, com Cortez e muitos outros que por aqui aportaram e promoveram guerras de extermínio. Os Estados Unidos já deviam ter assimilado como cidadãos os seus povos originários e já deviam respeitá-los em suas demandas, mas não foi o que aconteceu. Todos os tratados de paz foram devidamente rasgados por campanhas de conquista oficial dos territórios indígenas a favor das hordas de brancos que tinham por objetivo único o enriquecimento através do garimpo ou da constituição de latifúndios, da destruição das florestas e da matança de búfalos (dos quais aproveitavam apenas a pele), fonte de alimentação dos indígenas. A famosa “marcha para o oeste”. Tudo isso sabemos pelos livros de história; tudo isso os filmes de Hollywood retrataram de forma “brilhante”, para nos convencer que eram os indígenas “selvagens inimigos do progresso”. Diferente, no entanto, será acompanhar essa mesma história de conquista pelos olhos dos conquistados, dos derrotados, dos que sofreram barbaridades nas batalhas de extermínios promovidos pelo exército estadunidense, com seus rifles de repetição e seus canhões, contra arco e flecha e algumas armas de caça das tribos indígenas. É o que nos propõe o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, no original: “Bury my heart at Wounded Knee”, referindo a um dos últimos massacres absurdos, quando, em 1899, durante o processo de desarmamento dos Dacotas, um nativo chamado Black Coyote estava relutante em abrir mão de seus rifles, alegando que ele tinha pago muito caro por essas armas. A briga sobre os rifles de Black Coyote intensificou-se e um tiro acidental foi disparado, o que resultou em um tiroteio provocado pela 7.ª Cavalaria de forma indiscriminada por todos os lados do local, matando homens, mulheres e crianças, bem como alguns dos seus próprios companheiros soldados. Lançando mão de várias fontes, como registros oficiais, autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, Dee Brown faz grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Sioux, Cheyenne e dezenas de outras contar com suas próprias palavras sobre as batalhas contra os brancos, os massacres e rompimentos de acordos etc. Enfim, todo o processo que, na segunda metade do século XIX, terminou por desmoralizá-los, derrotá-los e praticamente extingui-los. Talvez um dos maiores libelos contra a ideia de que é impossível a convivência entre povos originários das Américas e seus conquistadores. O europeu e seus descendentes precisam se conscientizar, ainda hoje, em pleno século XXI, que a riqueza cultural de um povo está na sua diversidade e, principalmente, que o respeito ao meio ambiente que têm os povos originários – lição também por muitos deles aprendidas a duras penas – é a única saída para um mundo mais sustentável, sem riscos de extinção da própria humanidade. Um livro que, se você, leitor, não quiser sair de sua “zona de conforto” em relação a muitos problemas que hoje nos afligem, não deve absolutamente ler, já que seu intuito não é, de forma alguma, levar qualquer tipo de alívio ao nosso passado de exterminadores do futuro.