domingo, 31 de julho de 2022

Amuleto, Roberto Bolaño

 Amuleto, Roberto Bolaño


Auxilio Lacouture é uruguaia e vive clandestina na cidade do México. Não tem uma atividade profissional muito clara, mas faz bicos em casa de escritores ou na Faculdade de Letras e Filosofia, convivendo com muitos jovens poetas, sendo por isso considerada “a mãe dos poetas do México”. Magra e desdentada, é ela a narradora desse livro do chileno Roberto Bolaño. E sua narrativa acontece a partir dos 13 dias, em 1968, em que ficou presa no banheiro feminino da Faculdade, durante a ocupação militar do campus, quando, para não morrer de fome, comeu até papel higiênico. Suas memórias transitam por vários momentos e situações, em que se cruzam e entrecruzam inúmeros personagens, com destinos diversos, como, por exemplo, Lilian Serpas, a poeta salvadorenha. Lilian vive, como Auxilio, pelos bares e pelas noites, vendendo ou tentando vender gravuras de seu filho pintor, que vive recluso. Conta que um dia conheceu num bar um cubano e o levou para a cama. Era Ernesto Che Guevara. Mas não gosta de falar sobre ele. Muitos jovens poetas e outros já consagrados, de uma geração que parece caminhar para um destino trágico, perpassam pela narrativa de vida de Auxilio, até o seu delírio final, em que, presa na latrina da Faculdade, sonha com um exército de crianças entoando um cântico de liberdade, cântico esse que é o amuleto de toda uma geração perdida. Sobressai, para mim, a prosa deliciosamente envolvente do autor, além, é claro, das muitas referências literárias, o que tornou a leitura da obra extremamente prazerosa, já que gostamos, todos nós que amamos os livros, de livros que falam de outros livros e de outros escritores e poetas.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Utopia, Thomas Morus

 Utopia, Thomas Morus



Utopia é uma palavra inventada por Thomas Morus, a partir do grego e significa “um lugar que não existe”. Ficou no vocabulário e no imaginário humano para designar uma espécie de paraíso – sonhado ou desejado. No entanto, a ilha de Utopia, onde a propriedade privada e o dinheiro foram abolidos, onde o estado organiza a sociedade e os sistemas de produção de tal modo que haja uma distribuição equânime dos bens e da riqueza, onde também a individualidade não encontra espaço para se manifestar, não é exatamente o paraíso terrestre, ainda que o autor defenda que o seja. Num país de aparente perfeição, há escravos para os trabalhos menos nobres, como, por exemplo, a matança de animais, e há guerras, embora mitigadas por um complexo sistema de contratação de estrangeiros para executar a carnificina no lugar dos cidadãos de bem de Utopia. Também há religiões, ou seja, há liberdade religiosa, desde que as pessoas não neguem nem a eternidade da alma nem a existência de deus, o que as levaria a se tornarem escravas ou, até mesmo, a uma sentença de morte. Portanto, eivado de todo o moralismo do século XVI, a obra que praticamente escancara a imaginação humana para a ficção não resiste a uma análise moderna de seus princípios, embora seja considerada um marco do pensamento filosófico.

terça-feira, 26 de julho de 2022

A virada – o nascimento do mundo moderno, Stephen Greenblatt

 A virada – o nascimento do mundo moderno, Stephen Greenblatt


Quem gosta de livros gosta de ler livros que narram histórias de livros. E este é um livro que conta a história da descoberta de um dos livros mais emblemáticos da cultura greco-romana. O poema de Lucrécio – DA NATUREZA – estava perdido desde que fora escrito no primeiro século antes de nossa era, quando um secretário do papa João XXIII – o papa corrupto, cujo nome foi proscrito dos anais da Igreja Católica – Poggio Bracciolini resgatou das prateleiras de um monastério essa obra-prima, em 1417. Poggio era um caçador de textos antigos, apaixonado pelo mundo perdido da Grécia e de Roma. Seu interesse era meramente arqueológico e não teve noção clara do que representava o longo e complexo poema de Lucrécio, quando o encontrou e o divulgou, através de várias cópias. O mundo nunca mais seria o mesmo. Baseado nas ideias do filósofo grego Epicuro, o poeta romano defende que tudo o que é existe é fruto de algo que ele chama de virada, um desvio que tira as coisas da sua trajetória natural, para criar o novo, numa colisão aleatória das “sementes da vida”, os átomos, a única coisa eterna no mundo. E mais: que os deuses não têm nenhuma influência na vida dos homens, cujo medo religioso da morte – que é o fim de tudo – deve ser mitigado pela busca do prazer, não exatamente o prazer sensual, mas o prazer de viver. Prazer e virtude não são opostos, mas interligados. O universo – que não teve um criador – consiste de matéria — as partículas primárias e tudo que essas partículas se reúnem para formar — e de espaço, intangível e vazio. Nada mais existe. O universo experimenta sempre e as adaptações bem-sucedidas, como os fracassos, são resultado de um número fantástico de combinações que estão sendo constantemente geradas (e reproduzidas e descartadas) durante um intervalo de tempo ilimitado. Enfim, muitas outras ideias são desenvolvidas de forma poética e metafórica, com uma construção formal e filosófica impressionantemente moderna, o que justifica terem os escolásticos católicos escondido esse livro durante tanto tempo. A história de sua descoberta e das consequências de suas ideias no pensamento de muitos autores do renascimento encontra na prosa de Stephen Greenblatt uma narrativa de tirar no fôlego, porque adquirimos a certeza de que o que chamamos hoje de modernidade já estava ali, naquele poema espetacular, longo, complexo, que redime o pensamento de um filósofo, Epicuro, que sofreu talvez a primeira fake news da história, ao ter suas ideias relacionadas a um hedonismo que ele nunca viveu e nunca pregou. Para ler com o prazer das grandes descobertas e com o gozo do descortino de um momento da história da humanidade tão rico e prolixo quanto foram os séculos XV e XVI, quando nasce o mundo que hoje desfrutamos e em que vivemos, ainda pleno de negacionismos e ideias retrógradas, as mesmas que impediram que um livro como “De rerum natura” ficasse oculto aos olhos da humanidade por tanto tempo.


domingo, 17 de julho de 2022

Canção de ninar, Leïla Slimani

 

Canção de ninar, Leïla Slimani

Nas duas primeiras páginas do livro, um crime bárbaro num apartamento classe média num arrondissement de Paris: a polícia e paramédicos atendem duas crianças esfaqueadas – um bebê morto e uma menina agonizante, que não resiste, e uma terceira pessoa com ferimentos nos pulsos e na garganta. A mãe, que chega do trabalho, aos urros, também atendida pelos médicos. Vizinhança em polvorosa. Boatos: a babá matara as duas crianças. A partir daí, a história é simples em seu enredo e complexa em suas investigações das motivações para crime tão bárbaro. O casal, Paul e Myriam, mora num apartamento pequeno e tem dois filhos - um ainda bebê e uma garotinha – quando a mulher recebe oferta de trabalho como advogada. Precisam, então, contratar uma babá. Surge Louise, viúva, com uma filha adulta (e sumida), um doce de criatura, inclusive com cartas de recomendação de outro casal, cuja mulher, quando contatada, se derrete em elogios e diz que até pensou em ter outro filho, para manter a babá, já que o filho que ela cuidara já crescera. Aos poucos, vamos descobrindo a vida de cada uma das personagens, seus desejos e progressos, suas vicissitudes e aspirações, num processo que nos envolve a cada página, habilmente costurado pela autora. A grande dúvida que ela investiga: por que o ser humano mata outros seres humanos? Descobrimos as motivações, mas jamais conheceremos os gatilhos que levam ao crime, aquele instante de desumanização ou de insanidade que acomete pessoas comuns e as levam a atos absurdos e cruéis. Esse o grande mistério da mente humana e, cada vez que nos deparamos com um crime bárbaro, somos levados a nos interrogar sobre o que realmente somos, enquanto seres humanos. Por isso, a leitura de livros e tratados sobre crimes nos atraem. Mas, se você, especialmente você, leitora dessas linhas, que tenha filho ou filhos pequenos, não leia esse livro, apesar de ser ele praticamente uma obra prima: é assustadora a história da babá Louise e suas pequenas vítimas!


quarta-feira, 13 de julho de 2022

Enterrem meu coração na curva do rio, Dee Brown



Enterrem meu coração na curva do rio, Dee Brown


Os Estados Unidos da América constituíram-se como nação em cima do solo encharcado do sangue dos indígenas que viviam no território de onde partem hoje os poderosos exércitos que se julgam donos e xerifes do mundo, com direito a destruir e subjugar outros povos que não compartilhem de sua ideologia. Portanto, está no DNA dos estadunidenses o prazer da destruição, a compulsão orgástica por batalhas e pelo sangue “inimigo”, seja ele quem for. No primeiro momento de conquistas, esse “inimigo” foram os indígenas, as milhares de tribos que viviam no seu imenso território, caçando búfalos ou guerreando entre si, mas viviam e sobreviviam de acordo com seus códigos de caça e de guerra. Até que chegaram os homens brancos e sua ganância. O processo de genocídio dos povos indígenas começou no século XVI e culminou no século XIX, principalmente na sua segunda metade, quando a famosa cavalaria estadunidense promoveu os maiores massacres de indígenas, principalmente de velhos, mulheres e crianças, para orgulho de nosso atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, que já manifestou sua admiração por esse feito, criticando o nosso exército por não ter tido a mesma competência. Mas, voltemos aos massacres e à dizimação desses povos promovida na segunda metade do século XIX, quando – ressaltemos bem este ponto – os Estados Unidos já eram uma nação razoavelmente poderosa e a caminho de se tornar “civilizada”, ou seja, não estamos mais nos primórdios do encontro de duas civilizações que se estranham na época da conquista das Américas pelos europeus, nos anos quinhentos, com Cortez e muitos outros que por aqui aportaram e promoveram guerras de extermínio. Os Estados Unidos já deviam ter assimilado como cidadãos os seus povos originários e já deviam respeitá-los em suas demandas, mas não foi o que aconteceu. Todos os tratados de paz foram devidamente rasgados por campanhas de conquista oficial dos territórios indígenas a favor das hordas de brancos que tinham por objetivo único o enriquecimento através do garimpo ou da constituição de latifúndios, da destruição das florestas e da matança de búfalos (dos quais aproveitavam apenas a pele), fonte de alimentação dos indígenas. A famosa “marcha para o oeste”. Tudo isso sabemos pelos livros de história; tudo isso os filmes de Hollywood retrataram de forma “brilhante”, para nos convencer que eram os indígenas “selvagens inimigos do progresso”. Diferente, no entanto, será acompanhar essa mesma história de conquista pelos olhos dos conquistados, dos derrotados, dos que sofreram barbaridades nas batalhas de extermínios promovidos pelo exército estadunidense, com seus rifles de repetição e seus canhões, contra arco e flecha e algumas armas de caça das tribos indígenas. É o que nos propõe o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, no original: “Bury my heart at Wounded Knee”, referindo a um dos últimos massacres absurdos, quando, em 1899, durante o processo de desarmamento dos Dacotas, um nativo chamado Black Coyote estava relutante em abrir mão de seus rifles, alegando que ele tinha pago muito caro por essas armas. A briga sobre os rifles de Black Coyote intensificou-se e um tiro acidental foi disparado, o que resultou em um tiroteio provocado pela 7.ª Cavalaria de forma indiscriminada por todos os lados do local, matando homens, mulheres e crianças, bem como alguns dos seus próprios companheiros soldados. Lançando mão de várias fontes, como registros oficiais, autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, Dee Brown faz grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Sioux, Cheyenne e dezenas de outras contar com suas próprias palavras sobre as batalhas contra os brancos, os massacres e rompimentos de acordos etc. Enfim, todo o processo que, na segunda metade do século XIX, terminou por desmoralizá-los, derrotá-los e praticamente extingui-los. Talvez um dos maiores libelos contra a ideia de que é impossível a convivência entre povos originários das Américas e seus conquistadores. O europeu e seus descendentes precisam se conscientizar, ainda hoje, em pleno século XXI, que a riqueza cultural de um povo está na sua diversidade e, principalmente, que o respeito ao meio ambiente que têm os povos originários – lição também por muitos deles aprendidas a duras penas – é a única saída para um mundo mais sustentável, sem riscos de extinção da própria humanidade. Um livro que, se você, leitor, não quiser sair de sua “zona de conforto” em relação a muitos problemas que hoje nos afligem, não deve absolutamente ler, já que seu intuito não é, de forma alguma, levar qualquer tipo de alívio ao nosso passado de exterminadores do futuro.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Diário de Oaxaca, Oliver Sacks

Diário de Oaxaca, Oliver Sacks

“As samambaias, ou fetos, são vegetais vasculares membros do táxon das pteridófitas, de tecidos vasculares (xilema e floema), folhas verdadeiras, que se reproduzem através de esporos e não produzem sementes ou flores. A diversificação das samambaias parece ter ocorrido no Devoniano (há mais de 400 milhões de anos). Elas foram essenciais na ocupação dos ambientes terrestres pelos animais, fornecendo habitat e alimento além de serem importantes na formação do solo rico em nutrientes que viria a propiciar a formação das grandes florestas do carbonífero. Neste período as samambaias e as licófitas eram as principais representantes vegetais do planeta.” Essas informações, eu as colhi na Wikipedia. E há pessoas que são “loucas” por samambaias, principalmente um grupo de botânicos amadores e profissionais dos Estados Unidos. E esse grupo resolve fazer uma excursão ao México, mais precisamente à região de Oaxaca (o “x”, aí, se pronuncia como o “j” aspirado do espanhol), para apreciar e estudar as samambaias da região. Com esse grupo, está Oliver Sacks, também ele um grande apreciador dessas plantas. Por que Oaxaca? Porque, segundo muitos estudiosos, tal região possui uma das maiores variedades de samambaias do mundo. Nesse diário de viagem, Sacks descreve o dia a dia dessa excursão insólita, com humor, perspicácia e, principalmente, muita observação sobre essa região que, além das samambaias, possui uma história pré-colombiana fantástica, já que lá existem vários sítios arqueológicos, principalmente a cidade zapoteca de Monte Albán, uma relíquia abandonada por esse povo, misteriosamente, cerca dos anos 800 de nossa era, e por isso preservada da sanha destruidora de Cortez e dos demais espanhóis que o sucederam na faina de colonizar, expropriar, espoliar e matar os povos da Mesoamérica. Assim, além de muitas referências sobre a existência pré-histórica do objeto da excursão, as samambaias, o autor nos dá uma pequena aula de história e faz muitas reflexões sobre o encontro catastrófico de duas civilizações, a europeia e a dos povos originários da América Central. Você não precisa, pois, ser conhecedor, ou mesmo, apreciador de samambaias, para se deliciar com a narrativa dessa inusitada excursão.