quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O colecionador, John Fowles

 O colecionador, John Fowles


A história do livro pode ser resumida assim: um jovem inglês persegue uma bela estudante de arte antes de sequestrá-la e mantê-la em cativeiro no porão de sua fazenda rural. No entanto, por trás desse enredo aparentemente simples há um mundo de horror, de suspense, de visões antagônicas de vida, de uma tragédia que se desenha desde o início. O livro tem dois narradores, dois pontos de vista: a do sequestrador, Frederick Clegg, um solitário e maníaco colecionador de borboletas que ganha uma fortuna na loteria. Atraído pela beleza de uma jovem estudante de artes, dizendo-se apaixonado por ela, resolve, num ímpeto, raptá-la e levá-la para viver com ele numa casa isolada, presa num porão. Não tem nenhum desejo sexual pela moça, e até mesmo repele algumas de suas investidas, na tentativa de seduzi-lo e conseguir fugir. Não é, pois, um tarado sexual. Mas, será um louco, um maníaco, ou apenas um colecionador? Satisfaz todas as vontades da garota, durante o período de cativeiro, numa atitude de vassalagem, mas não se deixa enganar por seus truques, quando tenta escapar. Já Miranda, a outra narradora. tem em si a arrogância de seus 20 anos. Inexperiente da vida, não sabe se está ou não apaixonada por um homem mais velho, um pintor famoso. Só sabe que precisa fugir e que odeia seu carcereiro, e o despreza, por ser bronco, ignorante e até mesmo por falar mal o inglês. O choque entre as duas vidas é evidente: Clegg jamais conseguirá obter de sua prisioneira qualquer possibilidade de uma vida “normal” com ele, se é possível haver vida normal entre seres tão antagônicos, e mesmo uma vida conjugal absolutamente “pura”, como ele sonha e fantasia. Não preciso enfatizar que o romance tem uma estrutura cativante ao leitor, ainda que sua atmosfera seja de angústia e sofrimento, já que estamos diante de um dos grandes escritores ingleses do século XX. Também devo lembrar que o livro teve uma adaptação famosa para o cinema, em 1965, com direção de William Wyler, e interpretações soberbas de Terence Stamp e Samantha Eggar. Embora seja um lugar comum esse tipo de observação, concluo dizendo que o filme é muito bom, mas o livro é bem melhor.

sábado, 25 de novembro de 2023

As raízes do Romantismo, Isaiah Berlin

 As raízes do Romantismo, Isaiah Berlin



O livro é a transcrição de seis conferências que o autor realizou em 1965, na National Gallery of Art, em Washington. Por isso, tem a fluidez do discurso falado, mas também alguns senões em relação a citações de autores, já que as conferências foram realizadas a partir de anotações e não exatamente de um texto previamente escrito. O editor fez o possível para buscar as fontes, mas muitas delas ficaram obscuras. Isso, no entanto, não impede que leiamos com prazer as ideias de Berlin sobre um movimento que ele considera um dos mais importantes da história recente da humanidade, o Romantismo, por sua influência no pensamento ocidental se estender até os dias de hoje. Para fundamentar sua hipótese, analisa, com clareza e erudição, as obras dos principais pensadores e artistas românticos a partir do final do século 18, cujos pensamentos sobre as artes revolucionaram todos os conceitos filosóficos, sociais e até mesmo políticos, de forma duradoura e profunda, já que libertaram o ser humano das amarras do classicismo, das fórmulas rígidas do realismo, para levá-lo a voltar-se para dentro de si mesmo e sonhar. Das ideias românticas é que surgiram valores fundamentais da consciência humana, como democracia, liberdade, justiça, tolerância, pluralismo etc., ainda que, de acordo com Berlin, também tenha gerado, indiretamente, pensamentos furibundos como o fascismo. Não é necessário ser especialista em Literatura para entender e apreciar as reflexões desse livro fundamental para compreendermos as raízes não só desse movimento artístico e literário, surgido de pensadores quase obscuros de uma Alemanha mergulhada na mediocridade realista do século XVIII, mas principalmente para compreender a gênese de tudo quanto vivemos nesse confuso e complexo século XX e início do XXI.

sábado, 18 de novembro de 2023

Bem-vindos à livraria Hyunam-dong, Hwang Bo-reum

 Bem-vindos à livraria Hyunam-dong, Hwang Bo-reum



Gosto de ler livros que falem de livros. Já há várias resenhas sobre eles neste blog. E sempre algum título chama a minha atenção. Desta vez foi a jovem e estreante escritora coreana Hwang B-reum, com um romance que me atraiu não só por ter como tema uma livraria, mas por ser, talvez, o primeiro livro traduzido do coreano que leio. E surpreendo-me com uma narrativa simples e deliciosa. A trama gira em torno de Yeongiu, uma mulher talvez na casa dos trinta anos, recém-divorciada, desmotivada, vivendo uma vida vazia e sem sentido. Para preencher esse vazio e para buscar um motivo para viver, resolve recuperar um antigo sonho: ser dona de uma livraria. Leitora compulsiva, julga encontrar entre os livros conforto para seus males. Escolhe um bairro de classe média de Seul e, no início, a livraria tem poucos frequentadores e ela mergulha na solidão da leitura. Depois de uns dois meses, talvez por tédio, talvez para que o sonho não esmoreça, decide dar um upgrade no negócio. Começa contratando um jovem, também meio desiludido da vida, Minjun, como barista da livraria e iniciar uma série de atividades que possam motivar os leitores e compradores, transformando o espaço num lugar de conforto e acolhimento. Assim, aos poucos, através de diálogos interessantes e do desvelamento de algumas vidas que passam a frequentar a livraria, a autora vai nos envolvendo na trajetória de vida de sua protagonista, na sua busca por uma vida que faça sentido para ela, sem grandes arroubos, mas satisfatória o suficiente para que consiga estar em paz consigo mesma, já que a livraria, cujo tempo de duração ela previra para apenas uns dois anos, começa a fazer sentido como um negócio que não vai enriquecê-la materialmente, mas o contato com livros, com escritores, com leitores e frequentadores mitigará seu desencanto de viver. Enfim, não é, absolutamente, um livro de lições moralistas sobre o sentido da vida, mas dá ao leitor o conforto de saber que, afinal, a vida que temos é a vida que deve ser vivida da melhor forma possível e, muitas vezes, apesar das dificuldades, valorizada com o esforço do trabalho e de valores realistas, para que não se torne desmotivada e vazia.



sábado, 11 de novembro de 2023

O reino da fala, Tom Wolfe

 


O reino da fala, Tom Wolfe


A Linguística é uma ciência complexa. Estuda a linguagem humana, em todos os seus aspectos. Tem oferecido explicações para muitos fenômenos ligados à fala, usando métodos estatísticos, pesquisa de campo, comparações entre os milhares de idiomas, contribuindo para o entendimento da evolução humana. Mas, há um aspecto da linguagem que a linguística e nenhuma outra ciência conseguiu dar uma resposta satisfatória: a origem da fala. Como o ser humano aprendeu a falar? Os evolucionistas, Darwin à frente, levantam a hipótese de que os humanos aprenderam a falar quando começou a imitar o canto e os ruídos dos pássaros. Um dos maiores linguistas do século XX, Noan Chomsky, lançou uma hipótese que foi aceita por vários anos: o ser humano tem um órgão da fala, localizado em algum lugar do cérebro, o que lhe permite nascer com uma espécie de gramática universal. No entanto, “em uma noite clara do ano de 2016”, Tom Wolfe, premiado jornalista estadunidense, “surfando na rede”, encontrou uma página que dizia: “O mistério da evolução da linguagem”. O texto dizia que oito evolucionistas famosos, dentre eles Noan Chomsky, jogavam a toalha e afirmavam que a origem e evolução da fala continuavam um mistério para a ciência, ou seja, depois de 150 anos – desde a publicação da teoria da evolução – e após inumeráveis avanços da ciência, nada havia sido descoberto que afirmasse com absoluta certeza como o ser humano adquiriu a fala e como ela evoluiu. A curiosidade jornalística levou-o, então, a escrever este livro – “O reino da fala” – no qual nos conta as peripécias dos evolucionistas e dos linguistas em buscar a origem da linguagem humana, praticamente sem sucesso, a não ser... Bem, há então a história incrível de Daniel Everett, um missionário e dublê de linguista, que passa dez anos de sua vida numa pequena tribo amazônica, os pirahãs, que se comunicam através de uma língua que foge a todos os princípios linguísticos até então aceitos. Uma língua de vocabulário mínimo, com ruídos e gritos e cantos imitativos de pássaros; uma língua que só usa o presente, ou seja, não possibilita narrativas de passado ou de futuro. A publicação do livro que narra as aventuras e, principalmente, a estrutura da linguagem desses indígenas brasileiros abala completamente os conceitos até então disseminados por Chomski e seus seguidores. O que Wolfe escreve, portanto, não é um estudo sobre a fala humana, mas uma reportagem, às vezes irônica, sobre um quebra-cabeças que nos leva a conclusões bastante interessantes sobre a fala, a linguagem, como o principal artefato da evolução humana. Mas, para entender bem isso, é preciso que você leia o livro. E acredite: é uma leitura extremamente agradável. E até divertida. Mesmo que você não entenda nada de linguística e até mesmo tenha algum ranço para com a gramática, principalmente a gramática da nossa “última flor do Lácio”.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

O rei branco, Gyorgy Dragomán

O rei branco, Gyorgy Dragomán


O cenário: o subúrbio da “mais bela cidade do mundo”, no Leste Europeu, atrás da Cortina de Ferro; narrador: Dzátà, um garoto de 11 anos. A polícia do estado levou seu pai para trabalhos forçados nas obras do Rio Danúbio. Por quê? O menino não sabe. Apenas o seu inconformismo e a saudade imensa do pai afloram na narrativa. Enquanto aguarda, ou melhor, deseja a volta paterna, o garoto conta seus perrengues de órfão, sua relação com os colegas, as travessuras próprias de sua idade, entretendo-se com aventuras complicadas e perigosas, com jogos de guerra nos campos de trigo, contra moleques mais velhos e mais fortes; as constantes surras desses mesmos moleques ou dos adultos, muitos deles seus professores autoritários e violentos; os campeonatos de futebol entre as escolas, sempre decididos de acordo com interesses políticos; a relação complicada com os avós, principalmente com o avô paterno, um ex-dirigente partidário de prestígio, que ele vê apenas duas vezes ao ano... E sempre, a saudade e as lembranças do pai, as dúvidas em relação ao motivo de sua prisão, principalmente ao presenciar o desespero da mãe nas tentativas, sempre frustradas, de saber pelo menos notícias do marido. Os capítulos são quase narrativas isoladas, em que o garoto-narrador revela algumas de suas traquinagens ou um pedaço de sua vida atribulada. Dois capítulos me chamaram a atenção, nessa narrativa entrecortada: aquele em que o avô praticamente sequestra o garoto e leva-o ao alto de uma colina, de onde se avista toda a cidade, e lhe diz que é “a mais bela cidade do mundo”, mas que o garoto deve reter sua imagem na memoria e prometer que vai abandoná-la para sempre, assim que puder; e aquele em que ele narra o funeral do avô: não vou entrar em detalhes, mas é uma das páginas mais belas da literatura europeia, em termos de protesto contra o totalitarismo, em tons emocionais e humanos e com detalhes que só podiam ser captados pelos olhos de um menino, agora aos 12 anos. O húngaro Gyorgy Dragomán mostra, embora não só neste capítulo, mas em todo o livro, por que é ganhador de prêmios importantes, na sua terra e na Europa, e por que é considerado um dos grandes escritores do nosso tempo.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Marina, Carlos Ruiz Zafón

 Marina, Carlos Ruiz Zafón


Uma história deliciosamente absurda. Dizem alguns críticos que se trata de um “romance gótico”, talvez pelo barroquismo de seu enredo. Na Barcelona dos anos setenta, Óscar Drai, um garoto 15 anos, é um solitário estudante de um internato, praticamente esquecido pelos pais. Tem o hábito de usar seu tempo livre em caminhadas pelas ruas da cidade, atraído principalmente pela arquitetura de seus antigos casarões. E é num desses casarões que conhece a também adolescente Marina e seu pai, um pintor atormentado pela morte precoce da esposa. Tornam-se amigos e Óscar faz de sua paixão por Marina e a da amizade de seu pai a família de que ele sente falta, na solidão do internato, onde tem poucos amigos. Um dia, Marina leva-o a um cemitério abandonado, ao qual comparece sempre à mesma data e à mesma hora uma estranha mulher, que visita um determinado túmulo. Curiosos pela história dessa mulher, os dois adolescentes vão-se envolver num mirabolante enredo de mistérios que envolve palacetes e estufas abandonadas, manequins vivos, a marca de uma borboleta negra, e o conhecimento da vida de um imigrante de Praga que fez fortuna, se casou com uma cantora de ópera e tentou construir para ela um imenso teatro. Toda a investigação se complica para eles, numa aventura surreal pelas ruas e pelos túneis fétidos dos esgotos de Barcelona, em busca de uma verdade que lhes chega de forma trágica e através de reviravoltas de perder o fôlego, com o envolvimento de muitas outras personagens. Enfim, um livro realmente “gótico”, ao envolver perseguições e mortes misteriosas, num ambiente de ruas e casarões e construções antigas, dentro de esgotos onde vivem criaturas fantasmagóricas e assassinas, numa cidade-personagem que guarda memórias de traições, de vinganças, de busca frenética de um homem para driblar a morte e a decadência física, com muitos elementos de suspense e mistérios insondáveis, numa narrativa alucinante. O autor, Carlos Ruiz Zafón, cujo best-seller mundial, “A sombra do vento” (que já comentei aqui mesmo, neste blog), apresenta-nos, neste romance anterior, todos os elementos de um tipo de narrativa que conquistou e conquista milhões de leitores pelo mundo afora. E mais uma vez, aqui, como muitas vezes acontece na boa literatura, a história, mirabolante e absurda, transcende o inusitado, para levar ao leitor uma reflexão sobre a solidão e as perdas com que todo ser humano inevitavelmente tem que lidar um dia.