terça-feira, 29 de junho de 2021

A garota do trombone, Antonio Skármeta

 A garota do trombone, Antonio Skármeta


Em 1970, depois de muitas lutas e derrotas, Salvador Allende foi eleito o primeiro presidente marxista do Chile. Durante essa onda de felicidade e otimismo de uma grande ressaca cívica é que termina o romance “A garota do trombone” e a história de Magdalena, a si mesma intitulada Alia Elmar Coppeta, a festejar nas ruas de Santiago, com seu companheiro e seu filho pequeno, e emprestando ao presidente eleito o seu reluzente Chrevolet 56, para o desfile da vitória. História que se inicia cerca de 20 anos antes, quando essa garota malícia é trazida ao Chile por um trombonista, aos dois anos de idade, em busca de seu pretenso avô, o imigrante Esteban Coppeta, por haver perdido os pais em guerras da Europa. Na casa do avô ela cresce e descobre a vida, cultivando o cinema estadunidense e seus ídolos, o jazz, a obsessão por Nova Iorque e, ao mesmo tempo, descobrindo a utopia do socialismo e os encantos da adolescência e depois a vida adulta. Uma história, sem dúvida, contada com humor, delicadeza e inteligência por esse grande poeta que é Antonio Skármeta. Um retrato humano de um povo que elegeu um presidente que lhe acendeu a chama da esperança, posteriormente apagada por um dos mais violentos e cruéis golpes de estado da América. Mas isso é outra história. É necessário que fiquemos por enquanto com a delicadeza da narrativa dessa garota trazida às terras de Antofagasta pelas ondas do oceano e pelas notas musicais do jazz de um trombonista, e nos deliciemos com a prosa do grande escritor chileno.



sábado, 26 de junho de 2021

Ventos do Apocalipse, Pauline Chiziane

 Ventos do Apocalipse, Pauline Chiziane



Se há uma personagem central neste livro, é a miséria humana. A capacidade do ser humano de, mesmo nas situações mais degradantes, conseguir sobreviver. Um tema que é caro à literatura, esse, da sobrevivência humana em situação extrema. No entanto, cada autor, quando sabe manobrar as palavras e contar uma história com a pena molhada em sangue e a emoção a saltar de cada célula de seu corpo, a narrativa ganha contornos de obra prima, pela verdade de seu relato, pela força que ganham as palavras, quando escritas com essa força estranha que se chama paixão. E Pauline Chiziane tem tudo isso. Seu livro nos leva à África profunda, ao desespero de pessoas e populações em plena guerra de libertação de Moçambique, quando sobreviver torna-se não apenas um ato de coragem e resistência, mas também de sorte. Não há um herói ou heroína, neste livro. São narrativas um tanto quanto fragmentadas de vidas que se movimentam dentro do espaço limitado pelas situações climáticas extremas, de falta do básico, e dentro de suas crenças e conflitos étnicos e culturais, na fuga pela sobrevivência em meio a um conflito armado. Um grupo de homens, mulheres, crianças – de todas as idades – busca uma espécie de paraíso onde se encontraria a paz, onde a vida seria de novo possível, mas não se engane: não há paraíso na terra, principalmente numa terra encharcada de sangue e de ódio. Não é literatura para corações piedosos, mas um desafio a cada página à nossa própria capacidade de empatia e de compreensão das mazelas humanas. Vencida essa resistência – até natural – chegamos ao fim com a certeza de que lemos um profundo depoimento sobre nossa própria capacidade de sobreviver como raça humana e mais, com certeza de que acabamos de ler um grande livro.


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Viagem ao fim da noite, Louis-Ferdinand Céline

 Viagem ao fim da noite, Louis-Ferdinand Céline



Este é o caso típico de descolamento da obra com o autor. Publicado em 1932, foi saudado à esquerda e à direita como obra prima, que de fato é, elogiado principalmente por sua inovação no uso da linguagem mais próxima do coloquial, rompendo um certo elitismo dos estilos anteriores. Céline aderiu, no entanto às teorias antissemitas e apoiou abertamente o nazismo, o que lhe rendeu muitos – e merecidos – dissabores. No entanto, o romance permanece como obra prima e não o ler por questões ideológicas é perder uma das mais poderosas narrativas do século XX. Reputo-o como uma espécie de Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire, às avessas. Poderia até mesmo ter por título Ferdinand, ou o Pessimismo. Há muito pouco respiro nas agruras do jovem Ferdinand Bardamu, em suas aventuras, desde a primeira guerra, ao qual alistou sem querer e da qual saiu pior, muito pior do que entrara. Seu desespero leva-o às colônias africanas, onde mais uma vez presencia e vivencia todo o desalento e  toda a capacidade de destruir e de se destruir do ser humano. Viaja como escravo de galé num navio que o leva aos Estados Unidos, onde novas decepções o esperam. Ao voltar à França, com muito sacrifício, consegue terminar seus estudos de medicina e abre um consultório num subúrbio de Paris. Toda a torpeza da sociedade da época ali está retratada, o ser humano em toda a sua plenitude de fragilidades e de atos, intenções e capacidade de colocar seus sentimentos mesquinhos acima de tudo. Realmente, um grande romance, tanto em sua dimensão literária quanto humana. Não é uma leitura para fim de semana, mas para ser degustado lentamente, como um oceano imenso de emoções. Que se lamentem as escolhas ideológicas do autor, mas que não se deixe ler esse livro por conta dessas escolhas.


domingo, 20 de junho de 2021

Solar, Ian McEwan

 Solar, Ian McEwan



Um romance sobre a física ou um romance sobre um físico? Se você escolher a primeira opção, encontrará nesse belo livro todas as modernas teorias da física, tanto a “tradicional” quanto a “quântica”. E mais: acompanhará a discussão e o desenvolvimento de teorias da física em comunhão com teorias biológicas, para tentar resolver o problema energético do planeta, em busca de fontes limpas de energia que contribuam decisivamente para evitar o aquecimento global, um assunto não só atual mas ainda polêmico, em virtude de correntes conservadoras e mal intencionadas, que se negam a enxergar uma realidade que está diante de nossos olhos: o homem é, sim, responsável pelas mudanças climáticas, que podem levar ao colapso da humanidade. Não é o planeta que precisa ser salvo, mas o ser humano, já que a extinção da raça humana com o aquecimento global resolverá o problema da Terra que, após alguns milhares de anos (ou mesmo, milhões, o que, em termos geológicos e planetários é nada) se recuperará e voltará a ser o planeta azul, talvez com novos moradores. Mas se você optar por ler esse livro como a história de um físico, vai-se também surpreender a cada página com a trajetória de um cientista prêmio Nobel baixinho, gordo, de meia idade, predador sexual, ainda que pareça improvável, às voltas com seus cinco casamentos e dezenas de amantes, mais inúmeras questões éticas relacionadas à própria produção científica e também à própria condição do ser humano, quando confrontado com seus demônios e suas crenças mais profundas. Escrito em 2009, publicado em 2010, esse romance de Ian McEwan mantém-nos grudados em suas páginas do começo ao fim. Para ler, pensar e não esquecer.


sexta-feira, 18 de junho de 2021

Valsa Negra, Patrícia Melo

 Valsa Negra, Patrícia Melo



O ciúme não tem nome, neste romance de Patrícia Melo. Sabemos que o narrador é um maestro de uma grande orquestra e, em torno dele, gravitam a ex-mulher, Teresa, e a atual, Marie, trinta anos mais nova e violinista de sua orquestra; e também Rachel, a velha senhora, vizinha do prédio onde ele mora; a filha adolescente; a secretária com quem tem um breve caso e outras personagens menos importantes. O ponto de vista é dele, apenas dele: um Otelo cujo Iago está dentro de si mesmo. Por isso, em sua vida com a fulgurante Marie, judia, jovem, atraente, a busca de um sinal de traição torna-se obsessiva e essa obsessão vai num crescendo, num rodopio, como uma valsa negra, envolvendo o leitor à medida que o maestro mergulha em seu tormento, fechando-se em si mesmo e nos fechando a nós, leitores, nessa armadilha sufocante de mau humor, em mistura com amor e ódio. O maestro é um homem amargo, extremamente amargo, brigado com a vida e com tudo quanto o cerca: xinga a todos, sem qualquer pudor, principalmente a seus músicos e a todos os músicos e compositores. Sua bile amarga contamina sua visão de mundo e sua arte e leva-nos inexoravelmente para um beco sem saída de depressão e loucura. Se você estiver deprimido, não leia esse livro. Ou melhor, leia, leia sim: por pior que seja o seu estado, verá que há sempre alguém em estado pior do que o seu. Pode ser uma catarse.


segunda-feira, 14 de junho de 2021

Homo deus, uma breve história do amanhã, Yuval Noah Harari

 Homo deus, uma breve história do amanhã, Yuval Noah Harari


Esqueça tudo o que você já leu sobre o futuro em histórias de ficção científica. O amanhã esta aí, batendo à nossa porta. E, a não ser que ocorra algo extraordinário, que dizime grande parte da humanidade ou atrase por décadas o desenvolvimento econômico, o que é pouco provável, esse futuro que já se desenhou há alguns anos e parece se desenhar inexoravelmente é terrivelmente assustador para nós, o homo sapiens, o dono do mundo até agora. Nenhuma utopia, nenhuma distopia na análise fria de Yuval Noah Harari. Todos os problemas da humanidade serão ofuscados por três processos interconectados: 1. A ciência está convergindo para um dogma que abrange tudo e que diz que organismos são algoritmos, e a vida, processamento de dados; 2. A inteligência está se desacoplando da consciência; 3. Algoritmos não conscientes mas altamente inteligentes poderão, em breve, nos conhecer melhor do que nós mesmos. Tudo isso fruto do desenvolvimento da biologia e da sua fusão com as ciências da computação, o que possibilita que a máquina sobrepuje o homem, tornando seus algoritmos não orgânicos mais poderosos que qualquer ser humano, porque capazes de armazenar e analisar uma quantidade de dados praticamente infinitos, dados que nós mesmos, os humanos, lhes fornecemos. O ser humano – o homo sapiens - passou, nesses últimos 70 mil anos, por etapas de desenvolvimento que possibilitaram que se tornasse o senhor de todas as criaturas exatamente por sua capacidade de reunir e compartilhar dados para cada vez mais pessoas, de uma forma cada vez mais rápida, tornando-se ele próprio uma algoritmo orgânico. Chegou ao seu limite, mas as máquinas que ele inventou tornam-se cada vez mais inteligentes, capazes de conhecer o ser humano muito mais do que ele próprio imagina, e são elas que passam a governar nossas escolhas, nossas vidas, a decidir por nós. Sim, o assunto é complexo, o assunto é polêmico, por isso você, que está lendo essas poucas linhas que mal e mal atingem o cerne da discussão proposta pelo autor, deve, sim, ler esse livro, talvez a mais aterradora história que eu já li em toda a minha vida, se pensarmos que, mesmo com as ressalvas finais do autor, de que toda profecia é falsa, podemos olhar ao nosso redor e podemos verificar com nossos próprios olhos que quase tudo quanto ele afirma está acontecendo aqui, agora, com ampla repercussão em nossas vidas, sem que nos apercebamos. Sem dúvida, um livro aterrador, mas necessário.


sexta-feira, 11 de junho de 2021

Venenos de Deus, remédios do Diabo, Mia Couto

 Venenos de Deus, remédios do Diabo, Mia Couto


Uma história com poucos personagens: o médico português Sidônio Rosa que chega à Vila Cacimba, atrás da mulher por quem se apaixonou; o velho mecânico de navios, o moçambicano Bartolomeu Sozinho; sua mulher, Munda; o corrupto administrador da Vila, Suacelência. Em torno dessas vidas gravitam memórias, traições, desilusões e histórias complexas de amor e violência. E também a miséria humana, numa reflexão profunda sobre a razão da própria existência, a busca de sonhos irrealizáveis. E está ali a África do autor, a África profunda sobre a qual Mia Couto vem escrevendo e cujos mistérios vem desvendando em todos os seus livros, com aquele seu peculiar estilo de narrar que o torna um dos maiores prosadores de língua portuguesa da atualidade. Um livro para ler com o prazer de estar diante de uma narrativa robusta e empolgante, aliada a uma estrutura literária de grande qualidade. Ler Mia Couto é resgatar um tiquinho de nossa imensa dívida para com o continente africano, uma dívida que se consubstancia em nossa ignorância e em nosso desprezo para com um povo cujo sofrimento e cujas misérias, divisões e guerras intestinas têm a assinatura branca da escravidão, do colonialismo e da exploração predatória de suas riquezas.


terça-feira, 8 de junho de 2021

Anarquistas, graças a Deus, Zélia Gattai

 

Anarquistas, graças a Deus, Zélia Gattai



Não sei por que, adiei por muito tempo a leitura desse livro, até quase esquecê-lo. No entanto, entrou na minha lista. Felizmente. Zélia não tem o repertório literário de seu marido, mas narra com competência, sensibilidade e bom humor, seus primeiros anos de vida, na década de 20, do século passado, numa São Paulo inimaginável pelos atuais habitantes da megalópole de 11 milhões de habitantes. Uma São Paulo provinciana (será que ainda não o é, apesar de tudo?), com usos e costumes que lembram mais o século XIX, quando ainda pouco chegavam por aqui as novidades tecnológicas que mudaram para sempre o mundo, ao longo desses últimos cem anos, uma mudança tão profunda de usos e costumes, embora talvez não de mentalidades, que estranhamos aquelas ruas barrentas, aquelas toscas corridas de automóveis, aquelas festas e todos aqueles costumes tão detalhadamente debulhados pelos olhos da menina Zélia, ao falar de sua família, de seus vizinhos e parentes, moradores todos por ali em torno e próximos de um dos ícones desta cidade, a Avenida Paulista. Uma família comum, exceto pelo fato de serem, até um tanto ingenuamente - anarquistas, de um anarquismo extremamente humano e solidário, vivendo a vida de classe média da época, cheia de altos e baixos financeiros, mas sempre com grande compreensão de seus próprios limites e de seus pecadilhos, tanto como seres humanos quanto como um núcleo familiar. Um retrato de uma época e de uma cidade, em preto e branco, num recorte, repito, extremamente sensível e esclarecedor dos usos e costumes de então. Nostalgia, mas uma nostalgia sem saudosismo e com uma pitada de ironia, eis, em poucas palavras, o que me despertou a leitura desse livro. Enfatizo, para encerrar este breve comentário, que o marido de Zélia, seu companheiro por muitos e muitos anos, foi um de nossos maiores narradores, cuja obra não deve e não pode ficar esquecida pelas novas gerações. Estou falando de Jorge Amado. Leiamos Zélia Gattai. Voltemos a ler Jorge Amado!


sábado, 5 de junho de 2021

Quem manda no mundo?, Noam Chomsky

 Quem manda no mundo?, Noam Chomsky



O terrorismo é mal que assola e assusta o mundo, desde o final do século passado. Atribuímos – levados pela mídia – os atos terroristas a grupos fundamentalistas ou a grupos políticos radicais, constituídos de “monstros” incógnitos, dispostos a matar inocentes em nome de suas causas. Esquecemo-nos, todavia, do terrorismo de estado, ou seja, do terrorismo que nações poderosas praticam em vários pontos do globo, em geral sob aplausos da grande mídia comprada, ou com as desculpas mais deslavadas de “implantar a democracia” ou “destruir estados totalitários”. E mais: esquecemo-nos de que essa forma de terrorismo, iniciada principalmente a partir do final da segunda guerra é que, com o pretexto de combater o mal, fez exatamente o contrário: exacerbou o ódio dos chamados grupos terroristas que passaram a nos assustar. E assustados estamos todos, sem perceber, ou melhor, enganados pelos discursos, pelas falsas “doutrinas” de presidentes que se dizem democratas, mas que são exatamente os promotores dos maiores atos de terrorismo a que somos submetidos há tempos. Estou falando, claro, dos presidentes da maior nação terrorista do globo: os Estados Unidos da América. Nenhuma outra nação, na história da humanidade, teve tanto poder quanto os Estados Unidos da América. E nenhuma outra nação, na história da humanidade, destruiu tantos países e matou tantas pessoas – principalmente civis: homens, mulheres, crianças, idosos – do que os Estados Unidos da América. Sob os mais diversos pretextos, invadiu e bombardeou inúmeros países, destruiu governos e nações, impôs ou tentou impor seu poder em todos os quadrantes. Nenhuma outra nação, na história da humanidade, teve o poder de destruir toda a vida sobre a terra, com seu arsenal nuclear, e isso esteve a ponto de acontecer várias vezes, nesses últimos 75 anos. Escapamos por circunstâncias que se podem atribuir a mera sorte. Ou a detalhes de desobediência ou de desconfiança de funcionários subalternos ligados ao poder de apertar os botões do disparo de mísseis atômicos. Nenhum dos presidentes dessa nação é digno de confiança: todos, absolutamente todos, mentiram e mentem. Nenhum deles, absolutamente nenhum, mesmo os que se disseram pacifistas, deixou de aumentar o poder destrutivo dos Estados Unidos da América. E quase todos tiveram uma guerra para chamar de sua. Ou executaram atos de assassinato de líderes terroristas, em qualquer lugar do mundo, ou de opositores e possíveis lideranças voltadas a qualquer movimento libertador de seus povos. É a nação mais assassina do mundo, sem dúvida, e se você duvida do que disse acima, e se quer conhecer todos os detalhes da política suja de dominação do mundo, praticada pelos Estados Unidos da América, leia, leia com atenção – e permita-se vomitar, de vez em quando – leia este livro: QUEM MANDA NO MUNDO?


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Relatos de um gato viajante, Hiro Arikawa

 Relatos de um gato viajante, Hiro Arikawa




Havia terminado de ler A CASA DA VOVÓ, um mergulho no horror da ditadura militar de 1965. Precisava buscar um livro que desse descanso ao meu cérebro, algo bem leve e divertido. Escolhi RELATOS DE UM GATO VIAJANTE, da escritora japonesa Hiro Arikawa. Uma fábula leve, mas nem tanto; um livro para “descanso” da mente, porém não foi bem assim. Realmente é divertido ler uma história cujo principal narrador é um gato, um gato de rua. E até que a história começa mais ou menos “pra cima” (pero no mucho): Satoru, um rapaz solteiro, de seus pouco mais de 30 anos, alimenta um gato de rua que dorme sobre a sua van; um dia, ouve os lamentos desesperados desse gato e descobre que ele havia sido atropelado: cuida do bichinho e ambos iniciam uma amizade que só pode existir entre pessoas que gostam de gatos e... um gato. Dá-lhe o estranho nome de Nana (sete, em japonês), porque seu rabo é virado ao contrário, lembrando esse número. Um dia, Satoru, por um motivo desconhecido, precisa livrar-se do gato. Oferece-o a vários amigos em vários pontos do Japão, para onde ele e animal viajam, em busca de abrigo para o gato. Por um motivo ou outro, nenhum desses lugares é conveniente para Nana. Durante essa peregrinação, Satoru relembra seu passado, retoma amizades antigas. A sociedade japonesa, fria como nevascas de inverno, abre-se num raio de solidariedade e de calor humano a partir dos detalhes da vida de Satoru e seu amigo Nana, seu passado e seus amigos. Está lá, nessa fábula emocionante, que jamais se poderia imaginar contada sob a perspectiva dos olhos atentos de um simples gato de rua, uma profunda reflexão sobre a existência humana. Um livro para ler com prazer, mas também, para os mais sensíveis, com um lenço para enxugar as lágrimas, não exatamente pela tristeza, mas pela lição – sem dúvida, um clichê, mas um clichê nunca demasiadamente repetido – de solidariedade diante da transitoriedade da vida. A literatura japonesa contemporânea tem-me surpreendido, com autores que realmente sabem contar uma boa história.