quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A época da inocência, Edith Warton

 A época da inocência, Edith Warton



Final do século XIX: Estados Unidos, mais precisamente Nova Iorque. Uma “nobreza” – com todas as aspas – vive uma vida de luxo, ociosidade, festas, bailes, óperas. Newland Archer, um desses representantes de uma das famílias “nobres “contrata matrimônio com May Welland, jovem também pertencente a uma ilustre família. As regras sociais são rígidas em todos os aspectos da vida dessa gente, regulando as relações entre as pessoas e todas as demais facetas do comportamento. Não há brechas para outsiders, a não ser que sejam extremamente ricos, mesmo assim, são vistos com desconfiança. Não é preciso enfatizar o conservadorismo dessa sociedade. Newland, no entanto, apaixona-se perdidamente por uma prima distante da esposa, a condessa Olenska, vinda da Europa, onde vivia há alguns anos, casada e fugindo do marido, para tentar um divórcio e uma nova vida na fechada sociedade novaiorquina. Somente o poder e o prestígio da família Welland, da noiva de Archer, para protegê-la e torná-la “palatável” aos rígidos costumes locais. A paixão entre ela e o noivo da prima, assim, não pode prosperar, seria um escândalo de tal proporção, que abalaria toda a sociedade. Então, é preciso que essa paixão não se realize. E é em torno desse triângulo falso, já que Archer está impedido por deveres e razões de honra de concretizar seu amor pela condessa, além de todo um aparato que se arma a seu redor, sem que ele perceba, é que gira toda a longa narrativa entretecida pela habilidade da escritora. Todos os detalhes, toda a vida fútil e sem perspectiva dessa sociedade é rigorosamente descrita, sem nenhum aparente juízo de valor. Que julgue o leitor. Um romance extraordinário, que se degusta desde a primeira página, lentamente, ao mesmo fogo brando com que se cozinha a paixão entre a condessa e Newland, desvendando a hipocrisia, a manipulação, os pequenos e grandes atos “inocentes” que escondem as mazelas dessa sociedade de transição para um novo tempo, para a sociedade industrial do século XX. A lembrar, ainda, que esse livro inspirou Martin Sorcese a realizar um de seus grandes filmes, com o mesmo título do livro.


domingo, 26 de dezembro de 2021

Bonita Avenue, Peter Buwalda

 Bonita Avenue, Peter Buwalda




Família: todo ser humano possui uma. Por isso, o chavão: célula mater da sociedade. Tudo gira em torno da família de Siem Sigerius, neste romance do holandês Peter Buwalda. Ex-judoca que teve sua carreira interrompida por um acidente, descobre-se um gênio da matemática e torna-se reitor de uma famosa universidade. Casado em segundas núpcias com Tienke, tem um filho problemático do primeiro casamento e duas filhas da atual mulher, Joni e Janis, que ele criou como filhas. Joni envolve-se com Aaron, um fotógrafo. E em torno dessas personagens gira todo o livro. Com vozes narrativas às vezes em primeira pessoa, às vezes na terceira pessoa (um narrador onisciente), a longa e complexa história dessas vidas que parecem ter todo o sucesso e felicidade esconde segredos e relações conflituosas, a partir da própria personalidade do personagem central, Siem, o reitor que se torna ministro da educação, que tem uma tara por sites pornográficos e essa tara será a sua ruína e de toda a sua família. Com personagens fortes, complexas, devidamente aprofundadas em todos os seus aspectos de personalidade, o autor nos leva por um labirinto de sensações e sentimentos de espanto e, finalmente, de asco e terror nos seus últimos capítulos, numa das narrativas mais terríveis que jamais li, por envolver justamente a relação pai e filhos. Sem dúvida, um best-seller para se ler com sangue nos olhos e a faca na boca, que não nos deixa respirar um só momento, pela tensão e maestria do autor em nos levar através dessas vidas desesperadas.



quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

a máquina de fazer espanhóis, válter hugo mãe

 a máquina de fazer espanhóis, válter hugo mãe



Silva tem 84 anos. Quando sua mulher, Laura, morre, ele vai para um asilo de velhos – o feliz idade. Nos primeiros dias, revoltado, não fala com ninguém, mas todos os demais clientes da casa sabem que sua casmurrice não vai durar muito tempo, é normal isso, nos recém-chegados. E realmente, aos poucos, Silva não só faz várias amizades, como participa ativamente da vida social do asilo. Entre esses amigos, destaca-se um outro Silva, o Silva da Europa, bem mais novo do que ele e, coincidentemente, o enfermeiro que o consolou quando da morte da mulher. Também aí se destaca uma personagem especial: o Esteves sem Metafísica, que se diz o Esteves referido por Fernando Pessoa no poema “Tabacaria”, agora com quase cem anos. Bem, há vários outros personagens interessantes e instigantes, mas falar deles seria desvendar muito da trajetória do Silva no “feliz idade”. O que é preciso ser dito é que esse é realmente um romance sobre a velhice, sobre a tragédia do envelhecer e ter a certeza de que um lugar como aquele a que destinam os velhos tanto filhos e parentes e até mesmo maridos mais novos, por interesses vários é, na verdade, a antecâmara do fim. Não há amargura nem morbidez, no entanto, na narrativa do Silva que foi barbeiro, que era apaixonado pela mulher, que viveu sob o regime salazarista e dele guarda a lembrança de seu acovardamento sob o pretexto de preservação da família, mas agora dele tem apenas o repúdio e a certeza de quão mal fez a seu país aquele regime ditatorial. Embora ateu, aceita em seu quarto uma imagem da santa de Fátima, com a qual acaba tendo um estranho relacionamento, assim como são também muito estranhas outras relações que se estabelecem naquele microcosmo de vidas que convivem entre si, sabendo que a cada dia um novo inquilino pode aparecer para ocupar a vaga de um dos 93 internos que se foi. O romance é narrado por Silva, com todas as letras minúsculas (como era praxe na escrita do autor), com todas as idiossincrasias verbais e estilísticas da prosa elegante de Valter Hugo Mãe, sem dúvida um dos grandes escritores portugueses de nosso tempo.


segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

A bailarina da morte – a gripe espanhola no Brasil, Lilia Morita Schwarcz e Heloisa Miguel Starling

 



A bailarina da morte – a gripe espanhola no Brasil, Lilia Morita Schwarcz e Heloisa Miguel Starling



A gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro de 1918, a bordo do navio Demerara que, provindo da Europa, espalhou o vírus por todos os portos onde ancorou e despejou passageiros contaminados com o vírus, desde Recife, passando por Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, até Montevidéu, sob os olhares complacentes das autoridades. Complacência, leniência, negacionismo, aliás, foram as atitudes típicas de todas as autoridades, pelo país afora. E a “influenza hespanhola”, a mais mortal pandemia de todos os tempos, encontrou aqui o campo fértil para ceifar milhares e milhares de vidas. Quantos morreram? Ninguém sabe. Nem em termos nacionais, nem termos mundiais. Mundialmente, as estatísticas oscilam entre 40 e 100 milhões de mortos. Muito mais do que as guerras, muito mais do que todas as pandemias que assolaram a humanidade desde a pré-história, se fosse possível levantar dados tão longínquos. A humanidade sobreviveu. Sobreviveu porque, misteriosamente, a espanhola chegou, pegou todo mundo desprevenido, adoeceu muita gente, matou muita gente e, misteriosamente, desapareceu no final do ano: em janeiro de 2019, praticamente, já não houve registro de mortes pela gripe. A narrativa das duas historiadoras, neste livro escrito em 2020, em plena pandemia de covid-19, nos faz lembrar a todo momento as semelhanças entre o que aconteceu há cem anos e o que acontece agora. Num levantamento minucioso e preciso, levam-nos as autoras para um passeio juntamente com a influenza pela maioria das capitais brasileiras, desde o Rio de Janeiro, na época a capital “modernizada” e “higienizada” há pouco, à semelhança do que acontecera em Paris no final do século XIX pelas reformas de Housemann, passando por Salvador, Recife, Manaus, Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre etc. E o Rio era o espelho para tantas outras reformas de mesmo molde ocorridas em várias outras capitais. Mas a gripe não deu nenhuma “bola” para essas reformas excludentes e paliativas: se fez vítimas em todas as camadas sociais, não deixou de matar especialmente nas camadas mais pobres, os pretos, os favelados, os excluídos. Alguma semelhança com os dias de hoje? Todas, além da falta de jeito, do negacionismo, da incompetência das autoridades de então, como de hoje, em tratar do problema. Quando a narrativa vai chegando ao final e nós vamos constatando, estupefatos, todas as semelhanças que parece que cem anos não nos separam dos dois eventos, a espanhola e a covid, as autoras nos presenteiam com uma análise exatamente nesse sentido: comparam, de forma breve, mas cirúrgica, as práticas sociais e políticas das autoridades das duas épocas. A única diferença é que, na época da espanhola, não tínhamos o conhecimento científico e as máquinas salvadoras de vida que temos hoje. Mas, o resto é tudo igual: se a ciência deu um salto para o futuro, as autoridades políticas e sanitárias deram um salto para o passado, nestes famigerados anos de covid-19. E acredite: até a cloroquina, droga contra a malária, foi usada contra a espanhola!


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari


21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari





Vou começar esta resenha com um exemplo. Suponhamos que você não concorde que duas pessoas do mesmo sexo se relacionem. Então, você lê os argumentos do autor a respeito do casamento gay. Ele é a favor, claro, como um pensador liberal e antenado, completamente antenado, às questões relevantes de nosso tempo. Você concluirá: não concordo, mas você tem toda a razão, Harari. Paradoxal? Não! Porque simplesmente todas as questões abordadas pelo autor trazem uma profunda compreensão do momento atual, além de não terem nenhum ranço doutrinário. Discute-se desde o aquecimento global e inteligência artificial até questões de busca pessoal do conhecimento com clareza, com argumentos sólidos e baseados na profunda reflexão sobre a história do homem e sua trajetória até aqui, o que lhe permite jogar para nós suas inquietações sobre o que nos espera neste século XXI. O nosso mundo mudou e muito. E mudará ainda muito mais do que sonhamos, ou do que sonha a nossa vã esperança de que tudo se resolva, de forma mágica, sem que não tenhamos de intervir para que o ser humano viva e sobreviva a seus próprios desmandos e descobertas em relação ao controle do clima e à tecnologia, que promete abrir campos impensáveis na nossa relação com nós mesmos e com as máquinas do futuro. Não há, porém, catastrofismo, nem pessimismo, nas projeções e elocubrações futuristas do autor, apenas o alerta para o que estamos nos transformando e para o tipo de mundo que queremos construir. Sem dúvida, um dos grandes livros desse começo do século. Deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas de ensino médio e discutidas as suas ideias em todos os espaços da mídia.


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

20 contos de Truman Capote

 

20 contos de Truman Capote



Não é possível resenhar neste espaço os 20 mais ou menos longos contos contidos nessa obra. Só o que se pode dizer é que constituem uma boa amostra do estilo elegante do autor de “A sangue frio”. E como nessa sua obra mais conhecida, também aqui estão quase sempre presentes personagens do interior do Estados Unidos, do Alabama ou do Arkansas. Poucos os contos que saem do rural para as ruas de Nova Iorque, como o pungente “Senhor Desgraça”, em que uma personagem misteriosa compra sonhos das pessoas e uma garota tenta sobreviver vendendo seus sonhos para ele; ou ainda “A pechincha”, que trata da venda de um casaco de vison. Há ainda um elo entre todos eles: a época. Estamos no período de entre guerras, quando os Estados Unidos entraram numa grande depressão, principalmente depois da queda da bolsa, no final dos anos 20. As personagens são, portanto, filhos desse momento de grande pobreza, de até mesmo desespero, mas principalmente de grande desalento. Lutam para sobreviver dentro de um universo de falta de perspectivas. São os Estados Unidos em sua roupagem de maior desigualdade, antes, portanto, de dar o salto que levaria esse país à liderança mundial, quando se torna uma espécie de vampiro da guerra, de filho bastardo do nazismo, porque foi a nação que melhor soube transformar a carnificina dos anos 40 em riqueza e poderio, tornando-se, a partir de 1945, uma espécie de xerife do mundo. São, portanto, os contos de Truman Capote uma espécie de visão de um passado de dificuldades, misérias e desigualdades que ainda não tinham sido superadas ou varridas em parte para debaixo do tapete do extraordinário desenvolvimento econômico do “grande irmão” do Norte.


sábado, 11 de dezembro de 2021

A balada de Adam Henry, Ian McEwan

 A balada de Adam Henry, Ian McEwan



Fiona Maye, 60 anos, é juíza do Tribunal Superior de Londres, onde julga processos relacionadas à família (no Brasil, a vara da família). Além do amor ao que é certo e justo, condicionado por sua profissão, tem uma paixão: a música. Pianista amadora, mas muito competente, apresenta-se em concertos para a comunidade jurídica e para os amigos. Casada há muitos anos, vê seu casamento entrar em crise, quando o marido a acusa de insensibilidade, de haver desgastado a união e se afastado dele; por isso, diz que deseja ter um caso com outra mulher, com o seu consentimento, voltar a sentir os ardores sexuais da juventude, algo perdido entre eles, antes do ocaso. Claro que tal proposta é rechaçada e ele vai embora. Tentando superar a ausência do companheiro, lança-se ao trabalho. Tem um caso espinhoso: um garoto de 17 anos está internado em situação crítica de vida e necessita com urgência de uma transfusão de sangue, mas sua religião não permite, o que leva o hospital a entrar com uma ação na justiça para realizar o tratamento. Na audiência, depois de ouvidas as partes, a juíza resolve ouvir o próprio garoto, no hospital. Encontra um rapaz extremamente inteligente, mas aferrado às crenças dos pais e, por isso, resistente a que entre em seu corpo sangue alheio. Conversam por um longo tempo e Fiona descobre que o garoto está aprendendo a tocar violino. Mostra-lhe o instrumento e diz-lhe que já aprendeu uma canção, uma canção de Mahler, que a juíza conhece e sabe cantá-la. Fazem um dueto. O que a deixa bastante sensibilizada. Voltando à corte, sua sentença é favorável ao hospital, porque as leis britânicas colocam a condição de felicidade e proteção do menor acima de quaisquer outros princípios. Será esse garoto, salvo por ela, o motivo de suas preocupações futuras, quando eles se reencontram numa de suas viagens de julgamentos itinerantes e ele quer morar com ela, porque já não se sente bem em sua comunidade e em viver com seus pais. Algo se quebrara dentro dele. O fato de os pais, depois de serem tão fortemente contrários à transfusão do sangue, terem comemorado sua salvação fez com que ele perdesse sua única âncora no mundo, a fé. E não havia encontrado nada para colocar no lugar, a não ser poesia. Como seu pedido para morar com a juíza foi negado, apesar de ela ter-lhe dado um beijo de despedida, enviou-lhe um poema não terminado, falando de suas dúvidas. O desfecho é trágico. Não há julgamentos sobre o que fez a juíza, se foi certo ou errado. Deixa-se por conta do leitor. Não sabemos, inclusive, nem suas crenças religiosas, se ela é ou não religiosa. O romance é curto, lê-se – com prazer, diga-se – em pouco tempo. Mas ficam reflexões profundas sobre o ser humano, sobre as crenças e a fé, sobre até onde vão nossas convicções, se se pode ou não romper certos limites éticos ou comportamentais. Um grande pequeno livro de Ian McEwan, um dos principais nomes da literatura britânica contemporânea.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Catástrofe 1914 – A Europa vai à guerra, Max Hastings

 Catástrofe 1914 – A Europa vai à guerra, Max Hastings



O fato que deflagrou a Primeira Guerra foi o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, e sua esposa no dia 28 de junho de 1914. O arquiduque e sua esposa foram mortos a tiros em Sarajevo, capital da Bósnia. O assassino foi um estudante nacionalista sérvio, ao que tudo indica, sob os auspícios de organizações ligadas ao governo. No entanto, isso é só uma meia verdade: ninguém ligava muito para o arquiduque, era uma figura secundária da aristocracia austro-húngara, apesar de herdeiro do trono. O império estava decidido há muito a invadir a Bósnia, para aumentar seu poderio territorial. Contava, para isso, com o apoio do cáiser alemão. E o que se viu a seguir foi uma das maiores carnificinas da história. A Europa se transformou num abatedouro de milhões de soldados dos exércitos combatentes: de um lado, Alemanha e o Império Austro-Húngaro; do outro, a Tríplice Entente, formada por França, Inglaterra e Rússia. Os primeiros meses dessa carnificina são detalhadamente contados, quase dia a dia, por Max Hastings, através de depoimentos de soldados de ambos os lados. Não há mocinhos ou bandidos: todos são bandidos, no sentido mais torpe do termo. As inúmeras batalhas, travadas por tropas mal preparadas, com armas que funcionavam mal ou não funcionavam; com os batalhões tendo de caminhar milhares de quilômetros antes de encontrar o inimigo, por estradas de terra encharcadas, onde os veículos e os cavalos atolavam; as trincheiras alagadas, nas quais as condições de vida eram as mais miseráveis possíveis; as invasões de inúmeros vilarejos por tropas inimigas e o sofrimento da população civil, muitas vezes punida aleatoriamente com fuzilamentos por suspeita de acobertar franco-atiradores, o terror de todos os combatentes; as inúmeras decisões erradas e mal conduzidas por chefes militares grosseiros e estúpidos de todos os exércitos em luta, o que levava à morte milhares de soldados; a falta de infra estrutura para fornecimento de alimentos e munição; as tropas exauridas a entrechocar-se até à morte em combates corpo a corpo; a ignorância dos meios de comunicação de ambos os lados da guerra, quanto ao que realmente acontecia nos campos de batalha; os relatos individuais das agruras dos soldados, seus medos, os julgamentos e fuzilamentos por deserção, a exaustão total e seus pequenos artifícios para sobreviver, o que muito poucos conseguiram; enfim, cada detalhe da carnificina está devidamente relatada, para que o leitor tenha uma visão por dentro do que é verdadeiramente uma guerra. Sem dúvida, uma obra para se ler com a respiração presa ou opressa, por todo o horror que nos inspira isso que é uma das mais tenebrosas invenções da humanidade, a guerra.


domingo, 5 de dezembro de 2021

A casa no lago, uma história da Alemanha, Thomas Harding

 

A casa no lago, uma história da Alemanha, Thomas Harding



Século XIX, uma família de judeus adquire uma gleba de terras perto de Berlim, na Alemanha, numa localidade chamada Gross Glienicke, e ali constrói uma casa típica da região, não muito grande, mas o suficiente, na sua rusticidade de época, para uma família razoavelmente numerosa de final do século. Uma casa à beira de um belo lago. Mais de 120 anos depois, um descendente dessa família, o autor do livro A CASA NO LAGO, o inglês Thomas Harding, sob os olhares desconfiados e até mesmo opositores dos demais membros da família, decide voltar à casa do lago, levantar sua história e a história de seus moradores nesses anos todos. E a história da casa no lago e de seus moradores confunde-se com a história da própria Alemanha: passa pela primeira grande guerra, pelas modificações sociais dela decorrentes; a ascensão do nazismo e a perseguição aos judeus, a perda da propriedade para o estado nazista; a segunda guerra mundial e os inúmeros ocupantes da casa durante os anos do socialismo da Alemanha Oriental, quando da divisão do país; a construção do chamado muro de Berlim, que separou a casa do seu lago; posteriormente a derrubada do muro e a reunificação da Alemanha, até os dias de hoje, quando, no começo do século XXI, os políticos no comando de Gross Glienicke resolvem que a casa não tem valor histórico e resolvem derrubá-la para construir, no terreno, um conjunto de casas populares. Mas o autor consegue o apoio de associações preservacionistas, para reverter a situação e a casa finalmente é reconhecida como patrimônio histórico da vida não só dos judeus alemães, mas da própria Alemanha. Além da história por trás da história da casa e da trajetória dos seus ocupantes, há algo nessa crônica que nos leva a muitas reflexões: embora o autor não manifeste nenhuma simpatia pelo regime socialista vigente após a segunda guerra na Alemanha Oriental, ele narra detalhes bastante significativos da vida dos alemães orientais nesse período e mais: pela primeira vez, leio um relato dos últimos dias do muro e sua demolição pelos olhos do “outro lado”, isto é, pelos olhos daqueles que moravam na Alemanha socialista. E vemos a mudança de vida de toda uma comunidade como um espelho do foi essa mudança na vida de todo o país, uma mudança para um mundo capitalista não necessariamente melhor do que aquele em que viviam, como parece claro nos depoimentos dos que viveram os dois momentos, o do socialismo e, depois o da unificação, o do capitalismo ocidental. E que cada um tire suas conclusões desse belo relato, um documento de micro-história que nos ajuda a entender um pouco mais o que foi o século XX.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk

 Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk



Quando se lê uma boa ficção, forma-se em nós a convicção de que existe, sim, vida inteligente além dos campos da ciência, da tecnologia e da filosofia. Tenho tido momentos extremamente agradáveis e surpreendentes, ao visitar a literatura de vários países. E chegou a vez da Polônia. E com uma autora premiada, até com um Nobel, o de 2018. Este livro, “Sobre os ossos dos mortos” tem uma narrativa deliciosamente “lenta”, ou seja, não é um livro para se ler “numa sentada”. Vamos aos poucos desvendando os mistérios da narradora, uma “velhota meio louca”, como ela muitas vezes se define. Mora nos arredores de um vilarejo num canto perdido da Polônia, na fronteira com o País Tcheco. No inverno, tem como vizinhos apenas mais dois moradores, o Esquisito, e o Pé Grande. Assim ela os chama, e a todos os demais personagens, não pelos seus nomes, mas por características que ela lhes atribui. Pouco diz sobre seu passado, só ficamos sabendo que é culta, que sabe inglês e traduz poemas de William Blake com um ex-aluno, e que foi engenheira de pontes. Aliás, Blake é referência recorrente em toda a narrativa. Agora, vive solitária, e estuda astrologia. Crê que o destino de todas as pessoas está marcado nos mapas nas estrelas e nos astros. Faz mapas astrais. E sabemos que duas de suas “meninas” desapareceram, referidas ao longo da história: duas cadelas de quem ela gostava imensamente. Ah, sim: seu amor pelos animais torna-a vegetariana convicta e mais: tem ódio dos caçadores que rondam a floresta das cercanias. E então, começam a ocorrer mortes misteriosas: o primeiro é seu vizinho, o Pé Grande, e depois vários outros caçadores, até o último, o padre. A narradora tem uma hipótese: vingança dos animais – os caçadores foram mortos pelas corças que habitam a floresta. Claro que ninguém acredita nela e ela é considerada apenas uma velha visionária, que anda pelas trilhas. Interrompo aqui esse breve resumo, para não dar mais pistas ao leitor sobre o fim do mistério. Que nos leva a uma defesa intransigente da vida dos animais, num libelo contundente contra quem caça e mata animais, não apenas os selvagens, mas quem mata quaisquer animais. Há um outro romance, já referido por mim, também um grande sucesso internacional, que vai pela mesma linha “vegana”, “A vegetariana”, da coreana Han Kang. Fanatismos à parte, esse tipo de literatura leva-nos a uma profunda reflexão sobre nós mesmos e nossa ameaçada sobrevivência na Terra. Sim, há uma ameaça concreta pairando sobre a humanidade, se não mudarmos com urgência hábitos de predação e destruição do meio ambiente. Ajuda-nos tomar consciência de tal fato a existência de narrativas bem construídas e extremamente agradáveis e surpreendentes, como essa, além de serem literatura de primeira linha, que eu recomendo fortemente a todos que ainda creem haver vida inteligente além da ciência, da tecnologia e da filosofia.