terça-feira, 20 de agosto de 2024

Era no tempo do rei, Ruy Castro


Era no tempo do rei, Ruy Castro


Rio de Janeiro, l810. Dois garotos de 12 anos, vindos de mundos completamente opostos, tornam-se amigos e vivem várias estripulias pela cidade, dois anos após a chegada da corte portuguesa ao Brasil, fugida das tropas de Napoleão. Não são, no entanto, garotos comuns. O primeiro, Leonardo, brasileiro, saiu das páginas do romance de Manuel de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias”, tendo sua adolescência resgatada pelo autor. Já o segundo, Pedro de Alcântara, português, saiu das intrigas palacianas para as ruas, por seu jeito traquina de viver, antes de se tornar o herdeiro do trono como Pedro I, imperador do Brasil. O encontro, portanto, desses dois moleques é pura ficção, e das mais absurdamente deliciosas ficções saídas da pena de Ruy Castro. E a aventura picaresca dos dois é algo inesquecível para qualquer leitor que aprecie esse tipo de romance histórico, em que ficção e realidade se misturam. Não vou antecipar aqui qualquer fato da principal aventura das duas personagens, porque ela é tão quixotesca quanto muito bem tramada, com toques surreais de humor e imaginação. Tudo pontuado por inúmeras intrigas – essas, históricas, ou ocorridas com personagens reais – tanto palacianas quanto muitas outras figuras que viveram e se tornaram mitológicas, no “tempo do rei”, na cidade do Rio de Janeiro. E é esta cidade a terceira protagonista da história. Invadida por uma enorme quantidade de cortesãos e cortesãs, além de atrair comerciantes e golpistas de todos os lugares, a cidade suja, miserável e violenta, tem que começar a se adaptar aos novos tempos, tem que se reconstruir de acordo com a “moda da corte”. Esses primeiros anos da “invasão portuguesa”, em que a cidade maravilhosa ainda era praticamente uma vila à beira mar, com ruas estreitas e tortuosas, com mangues fétidos e morros inabitáveis, são cruciais para sua transformação em capital-sede de um reino. Por essas ruas, ainda pululam malandros de toda a estirpe, mas começam a surgir os primeiros sinais de um novo urbanismo. E é nessa cidade em efervescência, que Leonardo e Pedro, os dois amigos improváveis, vivem suas peripécias e nos encantam com suas estripulias, o que tona o livro uma leitura fácil e agradável, mesmo para quem não seja carioca, ou não esteja familiarizado com as intrigas políticas e de sucessão das cortes portuguesa e espanhola, envolvidas num jogo político de linhagens, apimentado pelas tropas napoleônicas.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O perigo de estar lúcida, Rosa Montero



O perigo de estar lúcida, Rosa Montero



Se você é uma pessoa “normal”, leia este livro e saiba o que é ser “diferente”, o que é visitar os umbrais da loucura. Se você não é “normal”, vai-se identificar com as inúmeras histórias com que a autora nos premia para falar de um assunto complexo como a “loucura da criatividade” ou “a criatividade na loucura”. E se você gosta de literatura, então o prato cheio está servido, porque o assunto predileto do livro são os escritores, suas neuras, seus processos criativos, suas crises. E mais: informações abundam sobre aqueles que flertaram com o suicídio ou que realmente se mataram, por variados motivos. Destaca-se, neste quesito, a história da grande poeta estadunidense Silvia Plath e sua vida complicada ao lado de um marido, também um grande poeta, mas abusivo e mulherengo. Há uma outra poeta estadunidense, também colocada no panteão da literatura, cuja vida é ainda mais misteriosa e complicada, na sua quase eterna reclusão, só tendo obtido reconhecimento depois de sua morte (um suicídio em vida, lento e sofrido?): Elizabeth Bishop. É sobre essa gente “estranha”, portanto, escritores e poetas, que a narrativa se desenvolve e nos desvela até mesmo aqueles que foram os mais beberrões, o álcool também uma fuga para muitos deles. Mas, o que a autora desfila mesmo é sua vasta leitura e pesquisa sobre o funcionamento de nosso cérebro na hora de criar, com informações surpreendentes , levando o leitor para uma viagem que nos impressiona, nos envolve e nos comove a cada página, principalmente ao nos desvelar a “tempestade perfeita”, aquela condição em que o nosso cérebro “estala” e nos leva para alturas incomensuráveis da criação artística, um momento de quase loucura, de que voltamos com uma obra prima, ou nunca mais voltamos. Também não deixa de nos relatar contatos com alguns dos inúmeros escritores que ela entrevistou ao longo da vida, como, por exemplo, Doris Lessing. E também suas experiências pessoais, seus perrengues e até mesmo uma curiosa história de uma “outra”, que às vezes se faz passar por ela e a coloca em pequenas saias justas e que só ao final do livro se revela à escritora e a nós, quando ficamos sabendo pouco, muito pouco, dessa mulher belíssima que lhe envia anonimamente pequenos presentes em várias ocasiões: ao morrer, ela lhe deixa uma carta, através de um irmão, na qual fala muito pouco sobre si mesma e os motivos pelos quais a acompanhou durante toda a vida, a não ser a grande admiração pela escritora. E mais: deixa para ela, Rosa Montero, uma herança improvável, que só a leitura do livro você, leitor dessas linhas, desvendará. Enfim, um livro para quem ama de paixão a literatura, que admira os livros e os escritores, que tem curiosidade de saber como as obras literárias nascem e o preço que os autores pagam para realizá-las. Imperdível, sem dúvida.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Histórias de cronópios e famas, Julio Cortázar

Histórias de cronópios e famas, Julio Cortázar


Contos curtos que contam coisas aparentemente sem qualquer nexo causal com a realidade. Imaginação no seu estado da arte, non sense, surrealismo. Esses são os ingredientes que se encontram nas histórias de humanos estranhos e de criaturas ainda mais estranhas, como os cronópios e os famas. Difícil definir o que são cronópios, criatura verdes e úmidas que gostam de cantar, que gostam de recitar versos, mas, distraídas ao extremo, vivem perdendo coisas, até mesmo o que têm nos bolsos e, quando atropeladas, choram. Já os famas são muito diferentes: são mais organizados, são mais práticos, porém quase sempre dignos de compaixão por parte dos cronópios. Entendeu? Não? Também eu não entendi nada, ou melhor, entendi tudo quando me deixei levar pelo jogo de imaginação proposto pelo autor, quando me imiscuí entre esses personagens bizarros, para acompanhar suas venturas e desventuras, seus deslizes e compaixões. Então, me diverti. E muito. Porque é pura diversão, o que nos propõe o autor, embora, sob o manto do non sense, do absurdo, esteja ele mexendo com nossas idiossincrasias, nossas manias e nossa própria interpretação do que seja um ser humano. Portanto, leia, sem qualquer ideia preconcebida. E divirta-se com os cronópios e famas, sendo você também um deles.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado, Ishmael Beah

 Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado, Ishmael Beah


Revoltam-me sempre os livros que falam de guerras, essa chaga indelével da humanidade. Realçam o lado monstruoso do ser humano, o ponto de limite e de quase não retorno do estado absoluto de barbárie. Escrevi “de quase não retorno”, porque às vezes há esperança. “Muito longe de casa” talvez seja esse grito de esperança. Falemos um pouco da história do livro. O autor-narrador é um menino de 13 anos que vive numa aldeia de Serra Leoa, país da África Ocidental, em 1993, quando está em curso um confronto de grandes consequências entre a guerrilha e as tropas do governo, conflito que durou até 2002, com mais de 50.000 mortos. Quando sua aldeia é invadida pelos guerrilheiros, ele e o irmão, na fuga, são separados da família. Empreendem, então uma longa caminhada em busca dos familiares e de refúgio contra a guerra, juntamente com outros garotos da mesma idade. O irmão também desaparece durante essa fuga alucinada, por aldeias destruídas e florestas inóspitas. Os garotos são capturados pelas forças do exército e passam a fazer parte de uma força de ataque e de extrema violência contra os guerrilheiros e, para isso são treinados, drogados e armados com a função de destruir, torturar e matar suas vítimas, os guerrilheiros. Esse o núcleo do livro: a trajetória de violência do menino-soldado dos 13 aos 16 anos, quando é retirado da guerra por organizações não governamentais e por órgãos da UNICEF e levado para a capital, Freetown, onde passa por meses de desintoxicação da violência e das drogas, até que seja encontrado um tio, irmão de seu pai, que o leva para morar com sua família. Mas a guerra ainda está em curso e, durante uma invasão da capital, o garoto precisa fugir mais uma vez, para não ser morto ou ter que voltar para a guerra, principalmente quando seu tio falece. Seu processo de recuperação incluíra uma viagem para os Estados Unidos, para uma conferência de crianças desalentadas de todo o mundo, inclusive do Brasil, e para lá que pretende, agora, fugir. A descrição da participação do menino na guerrilha, como afirmei, é o fulcro da narrativa e, nela, temos um relato cru e cruel de todas as ações de vingança e de terror empreendidas pelo grupo de crianças-soldados, comandado pelos oficiais do exército. Está ali toda a monstruosidade da guerra e da capacidade do ser humano de naturalizar a violência extrema. Mas, como são crianças, o que a mensagem final dessa autobiografia traz é a esperança de que, se retirados da engrenagem da violência, ainda podem ser recuperados, o que não acontece, infelizmente, com todos os meninos e meninas recrutados para a guerra em vários pontos do globo. Creio firmemente que o ser humano só conseguirá superar a barbárie, quando as guerras forem definitivamente erradicadas da história humana, infelizmente uma utopia muito longe de ser alcançada. Leia, portanto, o livro com olhos de esperança, para suplantar o horror, é só o que posso sugerir a um possível leitor dessas linhas e do próprio livro.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Montevidéu, Enrique Villa-Matas

 Montevidéu, Enrique Villa-Matas



Um romance quase sem enredo. Um narrador inominado – o alter ego do autor? – é um escritor que diz a todo mundo que não mais escreve, mas todos lhe dizem que ele não escreve, e então, para dizer que não mais consegue escrever, tece um enredo complexo de realidade misturada com ficção, sonhos e imaginação, com 240 páginas. Leva-nos de Barcelona a Paris, de Paris a Montevidéu, numa narrativa cheia de non-sense. O que foi fazer em Montevidéu? Não fica muito clara a participação dele num congresso estranho, com um tema estranho, no qual é um dos conferencistas. Mas, o que realmente acontece com ele em Montevidéu é uma série de fatos surreais. Primeiro, ele fica sabendo que num determinado hotel, chamado Cervantes, há um quarto onde teria se hospedado o escritor Julio Cortázar, onde ele teria escrito um conto chamado “A porta condenada”. Essa porta parece separar o mundo real do mundo da ficção e o instante em que Cortázar a descreve e passa por seu pórtico é o momento quando teria entrado na sua ficção o fantástico, marca de sua literatura. O narrador quer, portanto, hospedar-se no mesmo quarto e viver a mesma experiência do escritor e quando isso acontece, ele abre a porta para o quarto contíguo, o quarto da irrealidade, da fantasia, e torna-se obcecado, a partir daí, pela obra do escritor argentino. E suas viagens, através de várias cidades, como Paris, Reykjavik, Cascais, St. Gallen e Bogotá, transforma-se na obsessiva busca pela inspiração ou, como lhe diz um amigo, pelo Sopro que o fará voltar a escrever. Mas tudo isso pontilhado com muito non-sense, muitas citações literárias e referências tanto a vários autores, quanto a outras artes, como pintura, cinema etc., misturando, portanto, todos os gêneros, numa espécie de manual literário de como escrever romances num mundo complexo, em que a melhor metáfora para ele é mesmo um labirinto, onde há portas que não se abrem, ou quando se abrem, nos levam para uma supra realidade que, ao fim e ao cabo, é a matéria prima do escritor. Enfim, um livro para quem ama literatura, ama ler e não tem receio de se perder no labirinto.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Manual prático do ódio, Ferréz

Manual prático do ódio, Ferréz


A história se passa em 2002, ano em que País vivia um momento complicado: as taxas de desemprego eram muito altas, muitos trabalhadores entravam naquilo que os economistas denominam de desalentados. Pobreza, muita pobreza. E violência. E aqui está o primeiro ponto crucial para se ler e entender hoje esse livro polêmico, a começar pelo título: não creio que o autor pretendesse defender como causa da violência a pobreza extrema ou as extremas dificuldades das personagens, que vivem num bairro dos mais violentos, na Zona Sul da cidade de São Paulo. Talvez o desalento, a falta de perspectiva, a ausência do Estado, enfim, uma série de condições sociais, econômicas e sociais possam justificar todo o ódio e toda violência que perpassa a história de Lúcio Fé, Aninha, Régis, Celso Capeta e Neguinho da Mancha na Mão, os rapazes que se juntam para praticar um assalto a um banco, como forma de superarem suas condições de vida. Há ainda um outro ponto crucial para o leitor de hoje: o livro se insere naquela categoria que os críticos adoram chamar de “literatura marginal”. Marginal por quê? Querem dizer que foi escrita por um marginal, no sentido social e econômico do termo? O que é um absurdo. Querem dizer que é uma literatura fora dos cânones prescritos da chamada “boa literatura”? O que revela um grande preconceito. Sim, o romance tem uma narrativa que difere do normal, em alguns pontos. Por exemplo: o autor usa frases curtas, mas encadeadas em longos períodos, como um fluxo de memória ou para imprimir uma dinâmica de velocidade aos acontecimentos e para aquilo que se passa na cabeça das personagens (sem psicologismos, o que muito bom), mas esse é um recurso que, se nos intriga no começo, com ele logo nos acostumamos e não há, absolutamente, nenhuma justificativa para que seja considerado como “marginal”. Bem, não é possível resumir em poucas palavras toda a complexidade da narrativa, com inúmeros personagens e acontecimentos quase simultâneos, que o autor vai costurando num painel que revela vidas em estado extremo de tensão e violência. Não é um livro para mentes fracas, mas, sem dúvida, um relato contundente muito articulado através de uma literatura que se aproxima da oralidade e da cadência dos rap.