terça-feira, 31 de agosto de 2021

Bilhões e bilhões, Carl Sagan

 Bilhões e bilhões, Carl Sagan



Ler e reler Carl Sagan é sempre um prazer. Sua erudição e sua visão de mundo levam-nos a pensar de forma mais séria sobre o mundo em que vivemos. Neste livro, em especial, constam textos escritos nos anos 90, pouco antes de sua morte. São reflexões sobre vários aspectos da época que ainda estamos vivendo, sob o ponto de vista de um cientista e pensador. Não é possível ficar indiferente a textos sobre os gastos militares absurdos de todos os governos estadunidenses, para manter o país refém de bombas de poder de destruição não só de um pretenso inimigo, como a Rússia, como o próprio planeta. Não é possível ficar indiferente, quando, de forma quase lúdica, escreve sobre ética e preceitos éticos. Também seu discurso para as vítimas da guerra civil estadunidense, que matou mais 60 mil pessoas, soldados, todos eles, só uma vítima civil, enquanto as guerras modernas matam sobretudo mulheres, crianças, jovens, idosos, civis em geral, em massacres que ceifam não apenas milhares, mas milhões de vítimas. Sua visão do cosmo, da pequenez do homem diante da infinitude do universo, não nos leva para os caminhos do pessimismo, apesar de tudo, mas da confiança de que o ser humano, assim como tem capacidade de destruir, tem também capacidade de criar um mundo melhor, ou, pelo menos, construir pontes de entendimento que possam levar à sobrevivência da raça humana, neste planeta que até agora só tem merecido desprezo e destruição. Não apenas este, mas qualquer livro de Carl Sagan merece ser lido, principalmente pelos nossos jovens, para ajudá-los a escapar desse negacionismo estúpido que a direita hidrófoba tem espelhado pelo mundo.


sábado, 28 de agosto de 2021

Tempos difíceis, Charles Dickens

 Tempos difíceis, Charles Dickens



Difícil é a tarefa de resenhar esse romance de Charles Dickens. Com seus inúmeros personagens e vidas que se cruzam na pequena e cinzenta cidade fictícia de Coketown, na Inglaterra da segunda metade do século XIX, o autor vai fundo na crítica à sociedade capitalista que emerge com todo o seu poderio nessa época. Thomas Gradgrind é um homem dos fatos, da realidade, e cria seus filhos num sistema que elimina todo o sentimento e qualquer vestígio de sentimentalismo. E dá, claro, com os burros nágua. Por outro lado, o burguês e banqueiro Josiah Boundeby cria uma falsa biografia de self-made man que veio do esgoto, da mais profunda miséria e sofrimento, para ascender à condição de riqueza e poder. Há ainda o circo do senhor Sleary, a menina abandonada pelo pai, e tantos e tantos outros personagens, que é difícil traçar o perfil de cada um neste breve comunicado. O que importa: uma obra densa, um romance de profunda meditação e crítica, escrito com toda a ironia cortante de quem sabe que o mundo está sendo pouco a pouco envolvido pelo monstro do capitalismo, que cria desigualdades e miséria como base da riqueza e poder de poucos. A própria cidadezinha é uma personagem fundamental na obra, com suas chaminés que emporcalham a vida e começam a torná-la quase insustentável, a ponto de seus habitantes adquirirem o hábito domingueiro de sair para o campo, para fugir do cinza e das cinzas fuliginosas de suas chaminés. Sem dúvida, um clássico, para ler, reler, pensar e repensar valores.


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Clara dos Anjos, Lima Barreto

 Clara dos Anjos, Lima Barreto



Se o genial Machado de Assis mergulhou na burguesia carioca, para traçar o seu retrato e construir uma obra magnífica de percepção humana, Lima Barreto “suja” as mãos na lama e na pobreza dos subúrbios cariocas. E constatamos que, 100 anos passados, temos um subúrbio “moderno” com quase os mesmos problemas: falta de saneamento e de infraestrutura, violência e pobreza, muita pobreza. O subúrbio de Clara dos Anjos, a menina negra e pobre personagem do romance, vive num bairro distante, pouco povoado ainda, mas já trazendo as marcas da violência, do abandono do poder público e da falta de oportunidades de vida. Seu destino, agora que completou a maioridade, é casar-se, conforme o destino de todas as outras moçoilas de sua classe social e conforme a vontade dos pais. Seu pai é um carteiro que gosta de música, gosto que se transfere para a filha que, não podendo ter em casa um piano, só pode mesmo apaixonar-se pelas modinhas cantadas em rodas domingueiras promovidas pelo pai. Já a mãe é de uma absoluta subserviência ao marido, sem vontade para nada, nem mesmo capaz de orientar a filha para as coisas mais comezinhas da vida. Numa comemoração de aniversário, Clara se apaixona pelo “modinheiro” Cassi Jones, filho de família de posses, mas um indivíduo desqualificado, tido e havido como conquistador e violador de virgens e desencaminhador de mulheres casadas, uma espécie de dom Juan do subúrbio. Mesmo trancada em casa por seus pais, com poucas oportunidades para sair, Clara acaba caindo na lábia do conquistador. Seve-se o autor desse enredo simples e aparentemente sem atrativos, para nos apresentar uma galeria de personagens e tipos característicos do subúrbio e das condições de vida dessa gente abandonada por tudo e por todos, lutando cada dia para ganhar a sobrevivência do dia seguinte. Sem dúvida, um painel de tintas carregadas, mas esteticamente inserido no realismo-naturalismo que predominava na literatura brasileira da época. Não é Clara dos Anjos, com certeza, a grande personagem da literatura de Lima Barreto (não nos esqueçamos de Isaias Caminha e Policarpo Quaresma!), mas é o seu grito de horror pela condição das mulheres negras e sem perspectiva de vida do começo do século XX, além do retrato ácido das condições de vida do subúrbio carioca e, por extensão, das grandes cidades brasileiras, condições essas que, a despeito de todas as melhorias trazidas pela modernidade, ainda estão longe, muito longe de serem as ideais.


domingo, 22 de agosto de 2021

Minha Querida Sputnik, Haruki Murakami

Minha Querida Sputnik, Haruki Murakami 



O autor é best seller no Japão e internacionalmente reconhecido. Esse é uma de suas obras menos badaladas, mas não nega fogo. Ele sabe nos envolver com personagens que parecem comuns, tratadas como se fossem seres comuns, mas que sempre revelam facetas peculiares. Aqui, é uma garota de 22 anos, cujo sonho é tornar-se escritora e, por isso, escreve compulsivamente. Veste-se descuidadamente, como se fosse uma personagem de Jacques Kerouac, um de seus autores favoritos. Tem namoros eventuais e nunca se apaixonou. Tem um amigo e confidente que, no entanto, é totalmente apaixonado por ela. Essa é Sumire, Violeta em japonês. Um dia conhece Miu, uma mulher casada, 17 anos mais velha, bem sucedida negociante de vinhos. Miu encanta-se com a garota e convida-a a trabalhar para ela, como uma espécie de assistente pessoal. Para encarar a nova rotina de vida, muda completamente seu estilo de vestir-se e passa a acompanhar a empresária em suas viagens pela Europa, nos contatos com os fornecedores de vinho e descobre-se terrivelmente apaixonada pela Miu. Numa viagem à Grécia, resolve, uma noite, declarar-se à patroa e ambas até dormem juntas, mas essa lhe revela segredos de sua vida e sua incapacidade de amar. Daí em diante, um grande mistério ocorrerá na vida de Sumire e de Miu. Fiquemos por aqui, para não tirar de algum provável leitor o prazer de descobrir a prosa fluente e envolvente desse escritor japonês. Para ler, pensar na vida e nos seus mistérios. Pensar no amor e seus mistérios.




quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A Sombra do Vento, Carlos Ruiz Zafon

 A Sombra do Vento,Carlos Ruiz Zafon


Mistérios, muitos mistérios. Uma biblioteca fantástica, a dos Livros Esquecidos. Um autor de obras-primas que não fazem sucesso. Crimes. Vingança. Mansões abandonadas, assombradas? Um asilo de horrores. E a Barcelona da primeira metade do século XX, antes, durante e após as guerras que abalaram o mundo e as guerras que mudaram a política da Espanha. Barcelona e suas Ramblas molhadas de chuva e neve. Um garoto de quase onze anos levado pelo pai alfarrabista à misteriosa Biblioteca dos Livros Esquecidos, com uma condição: ele deve escolher um volume, um único livro, e cuidar dele para sempre, dentre aqueles milhares de autores desdenhados, abandonados, ali guardados como um tesouro. E o garoto, Daniel, escolhe um livro chamado “A Sombra do Vento”, de um tal de Carax, barcelonês que morou na França. Leva o livro para casa e este o fascina. Precisa saber tudo sobre esse autor. E passa sua adolescência em busca de informações sobre a vida mais do que misteriosa desse escritor que, ao que tudo indica, não tem mais nenhuma obra possível de ser localizada, já que há um homem misterioso que também procura suas obras, para queimá-las todas. E tem obtido sucesso em seu intento. Mas Daniel, agora um jovem, juntamente com seu amigo e ex-mendigo Fermín, está disposto a desvendar os mistérios desse Carax, sem perceber que há semelhanças entre a trajetória complexa, intensa e cheia de reviravoltas do escritor e sua própria vida. São eles uma espécie de modernos Don Quixote, sem a loucura, mas destemidos, e Sancho Pança, agora um Sancho esquálido, mas igualmente fiel. E a história, com um enredo que beira o melodramático, nos envolve numa trama do que se costumou chamar “romance gótico”, um romance policial cercado de acontecimentos aparentemente fantásticos, com reviravoltas e descobertas surpreendentes. Comece a ler e desgrude-se dessas páginas, se for capaz. Ah, sim, um adendo: a edição que eu li é lusitana e a tradução, primorosa, tem a sintaxe, o sotaque e, principalmente, o léxico surpreendente de Portugal. Um biscoito fino para quem, como eu, é fissurado no modo de falar e estruturar as frases do povinho irmão lá de cima.


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Explícito I, Ruy Bento Vidal

 Explícito I, Ruy Bento Vidal



Textos – chamemo-los assim, já que é impossível distinguir claramente o que é poema, o que é poema em prosa ou o que é prosa poética – de uma pessoa que se jogou de corpo e mente, mais corpo do que mente, na verdade, numa literatura visceral, dentro da melhor tradição de um Henry Miller, por exemplo. Não há, no entanto, regularidade nas escolhas dos textos dessa sua primeira antologia (primeira no sentido de que há mais duas): poder-se-iam depurar ou mesmo eliminar alguns textos mais antigos, em que o autor ainda tateava em busca do destemor recém-encontrado e muito bem explorado, sem amarras morais, num desnudamento total em sua temática, mas, principalmente, no ganho de força textual, ou seja, há tensão, tesão e prazer nas linhas e entrelinhas de suas páginas. Talvez uma leitura para fortes, mas sejamos todos fortes, que sairemos se não ilesos, pelos menos, um pouco menos preconceituosos ou menos temorosos das várias formas de amor que os seres humanos sempre experimentaram e que nem sempre tiveram coragem de explicitar.


 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O arquipélago da insónia, António Lobo Antunes


O arquipélago da insónia, António Lobo Antunes




Interior de Portugal, mais precisamente no Alentejo, é onde se passa essa história complexa. Um casarão imponente, símbolo do poder de uma época de riqueza e poder, agora abandonado. A história da família que ocupou esse casarão, as três gerações que se sucedem no domínio de terras férteis e empregados submissos. Não se pense, no entanto, que é uma história linear, de personagens que se sucedem, com seus momentos de glória e paixão. Nada disso. O autor, desde as primeiras linhas, desde as primeiras páginas, nos entontece com uma narrativa fragmentada, numa linguagem absolutamente inusitada, com múltiplas vozes se revezando na condução do enredo que se entretece em tramas que vão do passado ao presente e do presente ao passado sem que se tenha fôlego para tomar consciência de suas paixões, suas limitações, seus desejos e frustrações. O avô poderoso e seu neto autista parecem ocupar o centro de toda essa saga de espanto, violência, desilusões, com personagens já mortos ao lado de outros muito vivos. Um painel humano, na prosa de um dos autores mais renomados da moderna literatura portuguesa, mas um livro complexo. Vale a pena conhecer a prosa de Lobo Antunes, mas recomendo começar por algum outro livro dele, para se acostumar com seu estilo, por exemplo, este romance que, para nós, tem um título estranho: Os cus dos judas – mas que é muito, muito bom.



terça-feira, 10 de agosto de 2021

O piano e a orquestra, Carlos Heitor Cony

O piano e a orquestra, Carlos Heitor Cony



Com toques de realismo fantástico, viajamos com o autor ao longo dos trilhos da estrada de ferro que liga o Rio de Janeiro à fictícia cidade de Rodeio, onde vive Francisco de Assis Rodano. Ali ele cresce com uma dúvida cruel, que seu primo culto da cidade do Rio não consegue dirimir: a crença no Outro, ou seja, em Deus. Disposto a ser do contra, tem em sua trajetória uma passagem como toureiro de um circo mambembe dentre os muitos que passam pela pacata cidadezinha. Um dia, depois de matar o touro, que nada mais era que um boi fugido do matadouro da cidade vizinha, resolve assumir-se como o próprio inimigo do Outro, como o Demônio, e lançar o grande desafio. Já o seu primo jornalista está às voltas com uma vaca falante e quando essa vaca morre, ele decide investigar as atividades paranormais do primo de Rodeio que, dizem, já fez até defunto ressuscitar. As trajetórias dos dois personagens se entrelaçam numa narrativa divertida, em que as reiterações do autor, como notas repetidas de uma sinfonia, nos mostram vidas de indivíduos sempre em descompasso com a sociedade, como um piano em descompasso com a orquestra. A cidade de Rodeio, como uma Macondo fluminense, surpreende-nos a cada página com seus moradores e suas idiossincrasias, na escrita de um de nossos mestres da literatura contemporânea. Um livro realmente delicioso.


sábado, 7 de agosto de 2021

Notas sobre a pandemia, Yuval Noah Harari

 Notas sobre a pandemia, Yuval Noah Harari



Nessa coletânea de artigos e entrevistas publicados na imprensa internacional entre março e abril de 2020, o historiador israelense debate o impacto e as consequências da pandemia de covid-19. Ele explora temas como a disputa ideológica entre isolacionismo nacionalista e cooperação global, o risco da ascensão de estados totalitários na esteira das novas tecnologias de monitoramento em massa e os possíveis impactos do vírus na concepção contemporânea da morte. Harari desenvolve seus argumentos com a clareza de visão e de estilo que o consagrou, entrelaçando os caminhos e descaminhos da humanidade entre passado, presente e futuro. Diz ele no prefácio, em julho de 2020: “Alguns dos detalhes mencionados nestes artigos já foram superados pelos eventos, mas acredito que as mensagens essenciais só se tornaram ainda mais relevantes. Hoje, de modo ainda mais agudo do que em março de 2020, estamos cientes da necessidade da cooperação internacional, da falta abissal de lideranças globais, do risco representado por demagogos e ditadores e do perigo das tecnologias de vigilância.” Com isso, concordo plenamente: vale a pena ler e refletir com o ilustre historiador sobre lições que essa pandemia nos tem revelado.


quarta-feira, 4 de agosto de 2021

História de O, Pauline Réage

 História de O, Pauline Réage



Submissão total ao amor. A protagonista, conhecida apenas por O, aceita escravizar-se até a humilhação total por seu “dono”, num amor que a leva a se destruir, a se anular completamente como ser humano. A história é contada num estilo fabular e com grande perícia, para amenizar, talvez, as cenas de estupro, sexo sem limites e tortura, num ambiente elegante e burguês de uma Paris de meados do século XX. Considerado um dos clássicos do erotismo, seu conteúdo forte e sua incursão aos terrenos mais profundos do amor absoluto fazem desse romance muito mais um estudo da condição humana e sua capacidade de suportar a dor para entregar o prazer total a outrem, num jogo amoroso que, ao final, nos leva a descrer da existência do próprio amor, ou a considerá-lo o jogo mais perigosos a que se lança um ser humano. Leitura para corajosos.


domingo, 1 de agosto de 2021

O filho da mãe, Bernardo Carvalho

 O filho da mãe, Bernardo Carvalho



Tchetchênia, 2003, em plena guerra. Com todos os seus horrores. Mas não é da guerra propriamente que nos fala o autor, mas da maternidade. E várias histórias se entrelaçam - de amores e desamores, de abandonos, encontros, reencontros e desencontros. Múltiplas vozes se fazem ouvir, ao narrar essas histórias de filhos desgarrados e de mães com diferentes sentimentos de culpa, ou por terem abandonado seus filhos, ou por não lhes poderem dar o amparo de que necessitam em suas trajetórias que se deslocam da conturbada Tchetchênia para uma São Petersburgo vigiada e, até certo ponto, sitiada em si mesma, amedrontada entre a violência do capitalismo ainda emergente e suas agruras de cidade ao mesmo tempo tradicional e moderna, tentando encontrar sua posição no novo século. Ali se desenrola a maior parte do drama, que se expande também para outros países e até mesmo para o Brasil. Sem dúvida, um livro bem arquitetado em sua estrutura, com uma narrativa cativante, ao lado de um estilo que flui com uma quase oralidade e até mesmo com certa simplicidade que contrasta com a complexidade tanto dos dramas narrados, quanto do próprio enredo da trama.