Incidente em Antares, Érico Veríssimo
Falava-se à época, década de 70, em “realismo mágico” ou “realismo fantástico”. Ao mesmo tempo, a realidade nada tinha de mágica ou fantástica: a ditatura perseguia, prendia, torturava e matava cidadãos e cidadãs que dela divergiam. E os ventos que sopraram de Antares, a mítica cidadezinha gaúcha, perdida na fronteira com a Argentina, trouxeram o espanto e o fedor da volta à vida de sete mortos ilustres, insepultos por causa de uma greve, que se reúnem no coreto da praça para desafiar as autoridades e apontar a corrupção, a violência da polícia, o falso moralismo daquele microcosmo de desigualdade e domínio de uma classe privilegiada sobre o povo pobre e faminto, acantonado na favela Babilônia, a maior da região, onde só faltava, na ironia de um cronista da época, os famosos jardins suspensos de sua homônima histórica. O livro causou furor. Não foi proibido porque possivelmente a ignorância dos mortos-vivos fedorentos que nos governavam não devem ter atinado muito bem com as mensagens “subversivas” que estavam subliminarmente implícitas na narrativa de Érico Veríssimo. Li-o, como milhares de outras pessoas, e reli-o agora, para comprovar a força da prosa do escritor, e para verificar a atualidade de suas palavras. O mal cheiro que desandava do ilustres defuntos do coreto, a atrair ratos e urubus, empesteando os narizes do prefeito, do juiz, do delegado e de todos o moradores, não só ainda está no ar, como muitos mortos-vivos, que deviam estar sepultados em suas casernas, fazendo ordem unida e tratando apenas de suas vidas medíocres, estão por aí, com seus dedos podres a apontar para nossas mazelas, como se fossem os “salvadores da pátria”, encastelados com suas estrelas e sua estupidez em postos de comando, a destruir nosso futuro. O “incidente” que, em Antares, foi varrido depois da memória de seus moradores, repete-se como farsa e, como farsa, tende à tragédia. Sem dúvida, um livro ainda muito, muito atual. E salve a literatura brasileira!