domingo, 31 de outubro de 2021

A Resistência, Ernesto Sábato

 

A Resistência, Ernesto Sábato


Não há dúvida de que Sábato é um dos maiores expoentes da literatura argentina do século XX. Viveu exatamente um século, tendo falecido em 2011. O livro A RESISTÊNCIA foi concluído em 2000, quando o escritor já beirava os 90 anos e achava que ia morrer. Por isso, o tom de testamento em forma de cartas, nas quais o autor, com seu estilo preciso e elegante, traça considerações sobre o mundo atual. Perpassa por todas elas um tom de nostalgia do passado, como se na tradição e nos valores antigos estivesse a possibilidade de salvação do homem moderno diante da globalização, da deterioração dos costumes, das condições de vida das grandes cidades. A primeira impressão é de total pessimismo, ao analisar, por exemplo, a subserviência da mente humana à televisão e a seus programas sem nenhum conteúdo, como se apenas o divertimento importasse; ou a alienação e solidão do ser humano no meio das grandes multidões em cidades como Buenos Aires. No entanto, Sábato, talvez até mesmo numa visão ingênua, mas não totalmente desprovida de razão, vê como saída para crise de humanidade por que passamos o amor, a compreensão, a convivência etc., aqueles tais valores que ele, meio saudosamente, evoca do passado, em termos de honra e de uma certa ética cristã. Suas análises da vida moderna, mesmo que num tom às vezes queixoso, encontra eco em muitos outros visionários do mundo moderno, como Yuval Harari. Além disso, quando um escritor da estatura de Sábato debruça-se sobre a vida e se propõe a analisar o mundo e a época em que vivemos e passar essa visão para nós, temos, sim, de ler com cuidado suas reflexões, porque transudam a sabedoria não só de sua experiência e inteligência, mas também de sua sensibilidade. Mesmo que não concordemos com todas as suas considerações.


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Boca do inferno, Ana Miranda

Boca do inferno, Ana Miranda



Se você estudou um pouco de Literatura, vai-se lembrar do “Boca do Inferno”, o poeta Gregório de Matos Guerra. Pois é dele mesmo que trata o livro. Sua vida, seus perrengues e sua tumultuosa trajetória na segunda metade do século XVII na cidade da Baía. Sim, cidade da Baía, como foi batizada a capital baiana e como até hoje seus habitantes a chamam. Mas não é só de Gregório de Matos que trata o livro de Ana Miranda: entrecruzam-se inúmeros personagens, como Padre Vieira e sua família de perseguidos pelo governo de Antônio de Souza Menezes, o corrupto e vingativo governador e capitão-general do Brasil, nomeado pelo rei de Portugal; Bernardo Ravasco, o chefe do clã e irmão de Antônio Vieira, inimigos todos do governador; o judeu Samuel da Fonseca; o vereador Luiz Bonicho, que teve sua mão amputada e fugiu para Lisboa e depois para a Índia; Anica de Melo, prostituta e amante do poeta; Maria Berço, criada de uma das filhas dos Ravasco, presa, seviciada, torturada, mas depois de liberta herdeira da fortuna escondida de seu marido cego e sovina, o amor não realizado carnalmente do poeta, mulherengo de muitas amantes, negras, pardas ou brancas; e muitos, muitos outros personagens históricos, recriados pela imaginação da autora. A história gira em torno do assassinato brutal e da decepação da mão do alcaide-mor Francisco de Teles de Menezes por filhos e capangas ligados ao clã dos Velasco. A partir daí, uma perseguição sem trégua a todos que fossem ligados direta ou indiretamente aos Velasco, inclusive Gregório de Matos e o padre Antônio Vieira. Sobressaem os atos de corrupção do governador, dos juízes e demais componentes das cortes que comandavam a cidade da Baía, os costumes bárbaros e toda a sorte de vícios de cidadãos comuns e governantes, tão bem cantados e denunciados nos versos que corriam de mão em mão pela cidade, escritos pelo Boca do Inferno, assim denominado por sua verve que a ninguém poupava. Mas, o que fica claro é que a “boca do inferno” era a própria cidade da Baía, naqueles anos seiscentos, já uma metrópole de importância para o comércio, o contrabando e o tráfico de escravos. Um cadinho efervescente de homens e mulheres de todas as etnias e origens a buscar uma oportunidade de enriquecer, por meios lícitos ou, mais normalmente, ilícitos. Uma narrativa impressionante, neste belo romance histórico.


domingo, 24 de outubro de 2021

Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para o seu país, Jonathan Swift



Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para o seu país, Jonathan Swift


É exatamente isto: um “Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para o seu país”. O célebre autor de um dos livros mais lidos no mundo, “As aventuras de Guliver” também tem obras satíricas, num tom geralmente solene e aparentemente sério, em que o sarcasmo atinge alturas que, no caso do tema em questão, não deixa de nos causar um certo engulho. Mas, como diz a apresentadora e tradutora do livro, Clarah Averbuck: “A miséria da Irlanda, em 1729, e a do Brasil, em 2006,” [quando foi lançado o livro no Brasil] “não têm muita diferença. Mulheres em trapos rebocando filas de crianças indesejadas com pais desconhecidos, que ficam jogadas por aí, dormindo ao relento, crescendo com ódio e pedindo um troco no sinal fechado, enquanto fecham-se os vidros elétricos e os corações já endurecidos. A miséria é terrível, mas o mais terrível é se acostumar com ela e deixar endurecer o coração.” Tivemos, depois desse ano, alguma esperança de superar a pobreza, durante um certo período, mas, agora, em 2021, constata-se que a miséria da Irlanda de 1729 e a do Brasil de hoje não deixaram de diferir. O que torna a obra de Swift extremamente atual, com todo o seu sarcasmo. Infelizmente.


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A entrega: memórias eróticas, Toni Bentley

A entrega: memórias eróticas, Toni Bentley


“Ao cabo, só existem ideias velhas caiadas de novo” (Machado de Assis). O livro não poderia ser mais do que um clichê: uma história de amor apimentada. Mas, quando a caiação é boa, por obra e graça de uma boa escritora, aquilo que poderia ser apenas mais um relato erótico transforma o ato de leitura num prazer para além do erotismo. O resumo a seguir não é meu, é a apresentação da editora para o livro: “Poucas mulheres praticam, e um número menor ainda admite fazê-lo. Desde A História de O até O Beijo e A Vida Sexual de Catherine M., leitores se deixam fascinar por memórias subversivas escritas por mulheres. Mas nem mesmo esses clássicos eróticos ousaram desbravar o terreno que Toni Bentley explora em A Entrega. Ao conhecer um amante que lhe apresenta o sexo anal, ato que ela define como "sagrado", Bentley descobre um prazer radical e inesperado que a faz "despertar" e descobrir os caminhos de sua própria sexualidade. Nestas memórias ousadas e íntimas, escritas em primeira pessoa, a autora afasta o véu que esconde a experiência erótica proibida desde os tempos bíblicos e celebra "a felicidade que existe do outro lado das convenções, onde o risco é real e onde reside o êxtase". A Entrega é uma exploração sagaz, inteligente e eloquente da obsessão de uma mulher que fará os leitores questionarem seus próprios desejos. Trata-se de um relato corajoso do percurso de uma mulher pelos labirintos do desejo e da alma.” E eu completo: além da coragem de expor a sua descoberta do sexo anal e, através dele, a sua sexualidade, trata essa mesma sexualidade como forma de libertação, resumida nesta frase, quase ao final do livro: "Me foda!" mas "Não foda comigo!"


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Guerras híbridas - a abordagem adaptativa indireta com vistas à troca de regime - Andrew Korybko

 





Guerras híbridas - a abordagem adaptativa indireta com vistas à troca de regime - Andrew Korybko



O começo é um pouco estranho – não se sabe bem do que fala o autor. O final é complexo, principalmente para um leigo, como eu, em geopolítica, principalmente quando referida a assuntos internos de pequenos mas estrategicamente importantes países da Eurásia e do Oriente, como Cazaquistão, Uzbesquistão, Síria etc. No entanto, quando conceitua e explica o que são as “revoluções coloridas” e as “guerras não convencionais”, o que nos deixa na boca é um travo de ódio e nojo. Ódio daquela nação do norte que se diz xerife do mundo e nojo dos processos que ela usa para se manter no topo do mundo, neste século XXI, quando seu poderio militar parece esgarçar-se e sua soberania econômica tem sido ameaçada pela China. E nojo ainda mais pela falta de apego a quaisquer princípios democráticos ou éticos no tratamento dos demais povos do globo. E mais ódio ainda, quando associamos todas as técnicas de filhadaputice explícitas no livro aplicadas exatamente aqui, no Brasil, para derrubar de forma canalha um governo democrático que incomodava o “grande irmão”, em associação com juízes veniais e formados exatamente lá no ninho da águia, para agir exatamente como agiram: como vendidos ao capitalismo, ao mercado e às forças do retrocesso que hoje estão aí cagando em nossas cabeças. O resumo a seguir não é meu, encontrei-o na apresentação da edição brasileira, por uma editora: “Neste livro, Andrew Korybko constrói um novo conceito para explicar as novas táticas dos Estados Unidos para derrubar governos. A Guerra Híbrida é a combinação de revoluções coloridas e guerras não convencionais para substituir governos. Partindo do estudo de caso da Síria e da Ucrânia, o autor constrói um novo conceito, cujo modo de operação pode ser facilmente identificado em outros conflitos no Oriente Médio e na América Latina. A Guerra Híbrida é o modelo de intervenção para o século XXI. Se o padrão que os EUA vêm aplicando atualmente na Síria e na Ucrânia for indicativo de algo, no futuro a guerra indireta será marcada por “manifestantes” e insurgentes. As quintas-colunas serão compostas menos por agentes secretos e sabotadores ocultos e mais por protagonistas desvinculados do Estado que se comportam publicamente como civis. As mídias sociais e tecnologias afins substituirão as munições guiadas como armas de ‘ataque cirúrgico’ da parte agressora, e as salas de bate-papo online e páginas no Facebook tornar-se-ão o novo ‘covil dos militantes’. Em vez de confrontar diretamente os alvos em seu próprio território, conflitos por procuração serão promovidos na vizinhança dos alvos para desestabilizar a periferia dos mesmos. As tradicionais ocupações militares podem dar lugar a golpes e operações indiretas para troca de regime, que são muito mais econômicos e menos sensíveis do ponto de vista político”.


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A província das trevas, Daniel Arsand

 A província das trevas, Daniel Arsand



Século XIII, Armênia. Um rei franciscano, Hetum II, acusado de acatar demasiadamente as ordens do papa, tem a curiosa ideia de enviar uma caravana à China, para difundir o cristianismo entre os súditos de Kublai, o khan que se considerava o soberano do planeta. Para tanto ele nomeia embaixador do Sumo Pontífice Nicolau IV um inescrupuloso mercador de Veneza chamado Montefoschi, para ir a Pequim acompanhado de um monge de 20 anos, Vartan Ovanessian, iluminador que tinha como única ambição pintar as maravilhas do mundo. A eles se juntaria um malfeitor punido com a castração por suas ladroagens, um charlatão franco e mais uma tropa de armênios, mongóis e judeus, que iriam se revelar uma corja ordinária de devassos cruéis. A longa marcha por desertos de areia e neve resulta insana. Evoluindo lentamente como seres fantasmagóricos, os viajantes – bárbaros aventureiros em busca de uma história, de uma qualificação e de um destino – formam um agrupamento humano sem mulheres, para o qual o desejo não faz distinção de sexo. E tudo para eles – prazer, amor, dominação, glória, sonhos – acaba desaparecendo sem deixar sinais. Todos se arrastam pela estrada da loucura e da morte, onde são abatidos por pavorosas enfermidades ou devorados por ferozes lobos. São homens brutos, quase feras, mas que se humanizam no amor, no desejo e no compartilhamento de emoções entre si, e então a homossexualidade brota entre eles como nunca foi anteriormente retratada em livros de aventuras medievais, sempre vistos os cavaleiros como machos héteros e heróis acima de qualquer suspeita. Realmente um livro que quebra cânones desse tipo de leitura, com sua narrativa de múltiplas peripécias, mas num ritmo lento e reflexivo, numa prosa cativante e deliciosa. Prazer total.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

À espera dos bárbaros, J. M. Coetzee

 À espera dos bárbaros, J. M. Coetzee



Num momento em que não só estamos à espera dos bárbaros, mas vivemos em plena barbárie proveniente de um grupo político que não é apenas bárbaro, mas detém o poder e colabora para que ideias absurdas e medievais proliferem entre a população; num momento em que somos assolados por uma pandemia mortal e por mudanças climáticas que elevam a temperatura de vastas regiões do país e modificam seu clima; num momento em que, aproveitando-se da impunidade imposta por esse governo estúpido e negacionista, centenas de indivíduos inescrupulosos ligados ao baixo agronegócio, a madeireiros e a garimpeiros aproveitam-se da falta de chuvas para incendiar nossas matas, invadir terras indígenas e matar nossos índios, a reflexão proposta pelo escritor sul-africano Coetzee em “À espera dos bárbaros” torna-se extremamente atual e como que modelada para a nossa realidade. A história do livro pode assim ser resumida: num lugarejo da província de um império sem nome, um magistrado já idoso cumpre seus deveres cotidianos, à espera da aposentadoria e da morte. Tudo muda com a chegada de um coronel truculento que vem da capital para investigar e reprimir uma suposta invasão dos bárbaros que vivem além das fronteiras imperiais. A partir daí, o pacato magistrado é obrigado a assistir a uma sucessão de horrores sem fim (torturas, execuções etc.) praticados contra suspeitos e inocentes, em nome da segurança do império. Os temidos bárbaros reais nunca apareceram, mas a lição que fica é: nós somos os nossos próprios bárbaros. E mais: as forças militares que vieram para proteger o povo são as forças que o oprimem, o que nos leva a pensar para que servem os militares, e a concluir que sua existência é o próprio mal. Talvez eu extrapole o autor, ao chegar a essa conclusão, mas não posso deixar de registrar o fato de que há muito venho desenvolvendo a teoria – que me pareceu esboçada no romance – de que um dos grandes males do mundo, ao lado das superstições religiosas, foi a invenção dos exércitos e a criação das guerras. Para nada servem as tais “forças armadas”, a não ser para oprimir e matar, ou o “inimigo” externo, que é sempre aquele visto como diferente por um poder dominante corrupto e estúpido, ou – o que ainda pior – o “inimigo” interno, aquele que se opõe a um regime vigente, não importa sua coloração ideológica. A tal “garantia da lei e da ordem” por forças armadas são o engodo para massacrar qualquer tentativa de oposição e de democracia real de um povo. E, hoje, a essas “forças armadas” se juntam forças ainda mais terríveis de manipulação da realidade, para subjugar as mentes e levar o povo a caminhos predeterminados pelo poder político ou econômico, não raras vezes, pelos dois. Portanto, ler um romancista que nos leva, pelos caminhos da ficção, a interpretar a realidade, sem dúvida alguma é uma das formas de realmente entendermos o mundo que nos cerca.



sábado, 9 de outubro de 2021

Leite derramado, Chico Buarque


Leite derramado, Chico Buarque



Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. A fala desarticulada do ancião cria dúvidas e suspenses. Percorre todo o livro a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma mulher. Os múltiplos traços de Matilde, seu “olhar em pingue-pongue”, suas corridas a cavalo ou na praia, suas danças, seus vestidos espalhafatosos, ao mesmo tempo que determinam a paixão do marido e impregnam indelevelmente sua lembrança, ocasionam a infelicidade de ambos. Outras figuras, fixadas a partir de mínimos traços, circulam pela memória do protagonista: o arrogante engenheiro francês Dubosc; a mãe do narrador, que, de tão reprimida e repressora, “toca” piano sem emitir nenhum som; a namorada do garotão com seus piercings e gírias. Um bom romance, sem dúvida, mas ainda longe do que eu considero o melhor do autor: O irmão alemão, realmente muito bem engendrado.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Enseada Amena, Augusto Abelaira

 Enseada Amena, Augusto Abelaira


Literalmente, uma grande experiência literária, tanto a que o autor nos propõe quanto a que experimentamos, desde as primeiras linhas. Não há um foco narrativo, mas vários. Interpõem-se, interpenetram-se, num aparente emaranhado a cujo sentido vamos aos poucos desvendando, para nos surpreendermos com história de várias vidas – Osório e sua mulher, Maria José; Ana Isa e seus maridos, um dos quais está preso, sem que saibamos o motivo, o Amândio; amigos que dizem conhecer o protagonista desde a infância, mas talvez não seja bem assim, como o Alípio... Enfim, realmente tudo costurado pela prosa bem articulada, mas propositadamente construída, ou diríamos, costurada como num patchwork, tendo como fundo a origem da cidade de Lisboa, como, ironicamente, a “enseada amena” aonde aportaram vários povos. Augusto Abelaira desafia nossa percepção e nossa imaginação com esse livro que, repito, é uma experiência de leitura realmente inovadora, para a época em que foi publicado, em 1966, escondendo e, ao mesmo tempo, nos indicando caminhos que nos levam àqueles tempos tenebrosos da ditadura salazarista em vigor desde 1933 e só finalmente derrubada em 1974 pela “revolução dos cravos”. Deixemos claro que Abelaira foi um opositor ferrenho ao “estado novo”, sendo algumas vezes perseguido e preso.


domingo, 3 de outubro de 2021

Livre, a jornada de uma mulher em busca do recomeço, Cheryl Strayed

 Livre, a jornada de uma mulher em busca do recomeço, Cheryl Strayed

Existem narrativas “lentas” que, não importa quantas páginas tenham, é preciso ler com vagar, elas nos levam como ondas de mar calmo, mas profundo, apreciamos cada página, cada frase, cada palavra, como se fossem confeitos raros e de sabor delicado, que deixam, no entanto, uma impressão marcante, na boca e na memória. Há, por outro lado, narrativas “rápidas”, quase diria “nervosas”, que nos levam a uma leitura quase frenética, sem tempo para respirar, ondas bravias de mares que podem ou não ser profundos, as palavras como que voam diante de nossos olhos, não importa quantas páginas tenham. A história de Cheryl Strayed, escritora estadunidense, enquadra-se no segundo tipo: uma longa narrativa sobre sua experiência de trilheira numa das mais instigantes trilhas dos Estados Unidos, a famosa Pacific Crest Trail – PCT. Após perder a mãe, morta por um câncer avassalador aos 45 anos; após um casamento fracassado, um divórcio sofrido, por suas – delas, escritora – infidelidades, aos 26 anos, ela resolve buscar um recomeço, através de uma jornada quase surreal: caminhar 1700 km da longa trilha que liga o México ao Canadá, ao longo de uma série de cordilheiras nevadas e desertos que cortam vários estados da costa oeste dos Estados Unidos. Sua estilo é “rápido”, “nervoso”, sem nos deixar tempo para reflexões enquanto acompanhamos seus passos, suas vicissitudes, seus encontros e desencontros, ao longo da trilha, ao mesmo tempo que nos desvenda sua vida, seus sentimentos em relação à morte da mãe e sua relação com o marido e outros homens. Estilo, sim, best-seller, mas que contém – além da própria aventura – elementos suficientes para nos lembrar que, apesar de todas as dificuldades e sofrimentos, o ser humano é capaz de superações e de coragem para buscar a si mesmo, para se reencontrar, para se reequilibrar e seguir viagem. Sem dúvida, um bom livro para se ler, nesses tempos difíceis.