segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A via crucis do corpo, Clarice Lispector

 A via crucis do corpo, Clarice Lispector




“Se há indecências nas histórias, a culpa não é minha”: assim se desculpa a grande escritora, pelos treze contos desse livro que foge um pouco ao tipo de literatura praticado por ela. Foi fruto de uma encomenda, mas como tudo o que ela escreve tem seu estilo, sua forma toda peculiar e, por que não dizer?, sua genialidade, não encontramos nenhuma escatologia nos contos, mas sim, revelações de desejos inconfessáveis do corpo, delírios de almas atormentadas por experiências várias, desde a velhice que ainda traz ardores, até o medo da morte e os momentos de fracasso no amor. Humanizam-se todas as personagens pelo olhar sensível da autora, que nos leva pelos labirintos do desejo de forma elegante e sincera, resvalando as “indecências” com a sabedoria de quem sabe o que está falando, mas principalmente com o olhar agudo e, ao mesmo tempo, irônico e perspicaz. Nós, leitores, desculpamos todas as indecências, e só lamentamos que sejam tão poucas, não as indecências, mas as histórias, apenas treze.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A filha do capitão, Alexander Pushkin

 A filha do capitão, Alexander Pushkin



Pushkin é considerado um dos fundadores da literatura moderna russa. Viveu entre 1799 e 1837, no período romântico, com todas as características do Romantismo vigente. A história de “A filha do capitão” passa-se em 1773, no reinado de Catarina, a grande, época marcada por grandes revoluções populares contra o trono. Pietr Adreitch Griniov é um jovem oriundo da aristocracia do exército russo, tendo sido seu pai um oficial conhecido e admirado. Ao completar 16 anos de vida folgada e fácil, é enviado para servir num forte longínquo. Durante a viagem, conhece um mendigo maltrapilho e arrogante, mas condoído de sua situação, dá-lhe de presente seu casaco e seu cachecol, para se abrigar do frio intenso. Será esse mimo o que salvará sua vida no futuro e, também, complicará sua história. No forte, apaixona-se por Maria Ivanovna, a filha do capitão. No entanto, rebeldes amotinados invadem a aldeia e matam o capitão e sua mulher, deixando a moça órfã. Ele consegue fugir e, depois de muitas peripécias, volta ao forte e resgata o amor de sua vida. São muitas, muitas as peripécias, contadas numa linguagem ágil e deliciosamente envolvente, o que faz da obra uma leitura agradável, na sua aparente simplicidade de um herói que vence todas as dificuldades pelo amor de sua amada. No entanto, sob esse véu de escaramuças, fugas e coincidências relacionadas às revoltas dos camponeses contra o trono, apreendemos um vasto painel da vida, dos costumes e da política da Rússia do século XVIII, o que nos leva a colocar o autor, pelo menos para nós do ocidente, que só conhecemos a literatura russa através de alguns poucos grandes nomes, no panteão dos grandes escritores dessa enorme nação, e também dos escritores românticos do século XIX.


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Rebecca, Daphne de Maurier

 Rebecca, Daphne de Maurier





A história de um fantasma. Creio que seria essa a frase a resumir o enredo desse livro, que tem uma protagonista ausente, já morta, o tal fantasma, e grandes pinceladas de melodrama. Melodrama: não é, como muitos pensam, constituído de enredos melosos e sentimentaloides, embora muitos enredos desse tipo aproveitem-se da estrutura melodramática para provocar lágrimas em seus leitores. Melodrama é o enredo em que nada é o parece, ou seja, quando as personagens parecem uma coisa e, na realidade, são outra, muito diferente. O melodrama engana o leitor o tempo todo. No cinema, Hitchcock usou e abusou dessa estrutura, para pregar sustos reais ou imaginários em seus espectadores, ou levá-los a pensar que tal ou qual personagem era inocente, para, ao cabo mostrar que era culpado, e vice-versa. Não à toa levou às telas outros três livros da autora de Rebecca, todos estruturados de forma melodramática. Voltemos ao nosso livro: a narradora é uma jovem órfã, na década de 30, empregada como dama de companhia de uma senhora inglesa excêntrica. Durante a estada das duas em Monte Carlo, na França, ela conhece Maximiliam de Winter, um inglês quarentão, recentemente viúvo e rico. Casam-se em poucas semanas e o casal vai morar na mansão chamada Manderley, nas costas da Inglaterra. E aí começam os problemas da jovem esposa: vê-se “atormentada” pela sombra da ex-mulher, que era seu oposto em tudo, pelo menos era o que ela imaginava: alta, bela, orgulhosa, esportista e, principalmente, amada e admirada por todos – amigos, vizinhos e empregados da mansão, onde reinava sobranceira. Não falta, entre os empregados, a administradora misteriosa e fervorosa admiradora da morta. Também há figuras estranhas, como o rapaz abobado que frequenta a praia preferida da morta. Manderley, na majestade de suas construção, com seus jardins e bosques floridos, torna-se praticamente uma “personagem” nesse romance de intricadas implicações psicológicas, em que há muitos segredos a serem desvendados e mistérios insondáveis da mente humana. O enredo é muito bem construído, para nos levar até as últimas linhas em suspense, mesmo que alguns dos mistérios e segredos tenham sido desvelados. Boa leitura para um fim de semana frio, degustando um vinho e um cobertor. Ou, no verão, à sombra de coqueiro, degustando algo bem gelado.



sábado, 22 de janeiro de 2022

Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, Ariano Suassuna

 

Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, 
Ariano Suassuna



A palavra cria a verdade e a verdade é a palavra transformada em sonho e delírio de um decifrador de enigmas e bibliotecário do sertão paraibano que se diz descendente de uma linhagem de reis tão tresloucados quanto ele, num sebastianismo que se materializa num “encoberto” que, assassinado, ressuscita e volta montado num cavalo branco, para restabelecer a monarquia e fazer do sertão o paraíso de seu desesperado e angustiado povo, liberto, enfim, da espoliação de seus coronéis que, por desdita, são exatamente os reis que os salvarão da miséria em que se encontram. E o sonhador-mor de toda essa esperança sebastianista é Dom Pedro Dinis Quaderna, o tal decifrador e visionário envolvido num processo judicial em que é acusado da morte de seu padrinho, um dos reis, degolado num quarto fechado no alto de uma torre que lembra as pedras gêmeas que Quaderna vê como as torres de seu castelo, de onde, por três anos, há exato um século, foi coroado imperador o primeiro rei do sertão. Por causa desse processo, faz um longo depoimento a um juiz, em que relata suas aventuras e desventuras, as batalhas sangrentas envolvendo a volta do tal “encoberto”, o jovem do cavalo branco, seu primo; expõe sua filosofia e a de seus amigos Clemente e Samuel, dois filósofos que, com ele fundam uma academia de literatura e história; conta toda a história de sua linhagem familiar de reis e príncipes; fala de seu desejo de ser coroado rei, mas principalmente, de se tornar “o gênio da raça”, como poeta, e escrever um longo poema ou uma longa epopeia narrando todos os seus delírios e a história dos reinados de sua família. E todo esse romance de reis e reinados sertanejos se transforma na palavra fluente e poética da longa, longuíssima narrativa do visionário Quaderna que, ao final, já como rei do Sertão, é coroado pelos mais insignes nomes da nossa cultura como o “gênio da raça”, conquistando, enfim, seu sonho mais acalentado, ainda que o sol sertanejo que ele contempla seja visto por trás de barras de ferro. “A Pedra do Reino” cumpre, assim, o que promete: uma das mais belas narrativas de nossa literatura. Muitos críticos já o compararam a inúmeras outras epopeias ou romances, desde “Don Quijote” até “Grande Sertão: Veredas”. Esqueça todas essas comparações. São inúteis, mas não são inúteis nosso deleite e nosso enriquecimento como brasileiros que as visagens de Dom Pedro Dinis Quaderna nos proporcionam ao longo de cada uma das páginas desse livro memorável. E viva Dom Sebastião!


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A morte feliz, Albert Camus

 A morte feliz, Albert Camus



"No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?" Essa a proposta de Eça de Queiroz, em “O Mandarim”, ao seu personagem. Mersault, de Camus, em “A morte feliz” não tocou a campainha: entrou no quarto de seu amigo Zagreus, ex-amante de sua namorada, agora numa cadeira de rodas, sem as pernas, e rico, muito rico, e simplesmente deu um tiro em sua cabeça, apossou-se de seu dinheiro e foi viver a vida. Importante dizer que Mersault teve uma vida difícil, de muita pobreza. E agora, podia dar-se ao luxo de viajar de Argel para umas férias na Europa, depois comprar uma casa confortável num local isolado e morrer feliz, sem nenhum remorso. Parece simples, assim contada, a história que Camus nos apresenta, mas o livro é extremamente detalhista e reflexivo, principalmente sobre o que é a vida e, consequentemente, a morte, e, principalmente, o que é felicidade. O estilo vigoroso do autor não dá ensejo à monotonia ou ao tédio. Escrito entre 1936 e 1938 e só publicado em 1971, onze anos após sua morte, é uma obra essencial para a compreensão da poética e do pensamento de Camus. Dizem alguns críticos que seria uma espécie de preâmbulo a “O estrangeiro”, uma das suas obras-primas. Para ler com calma, degustando cada palavra, cada frase, cada parágrafo.



domingo, 16 de janeiro de 2022

Um conto de duas cidades, Charles Dickens

 Um conto de duas cidades, Charles Dickens




O livro foi escrito quase 60 anos após a Revolução Francesa (1789-1799). Charles Dickens usou como fonte histórica para criar sua ficção em torno dos fatos que antecederam e se sucederam à Revolução o livro de Thomas Carlyle, “História da Revolução Francesa”. Também alimentou sua prosa um profundo conhecimento das ruas de Paris de seu tempo, embora já bastante alteradas em relação ao final do século XVIII, e seu interesse por presídios, que visitou não só na cidade das luzes (a cidade de seu tempo), mas também na Inglaterra e nos Estados Unidos. O assunto de “Um conto de duas cidades” é, portanto, a época de agitação política, social e econômica da França. Esqueça, porém, a história oficial: ele não diz nada a respeito das personagens políticas da época. Seu foco é o povo, o “povão” miserável, semi-escravizado por uma nobreza insensível e arrogante, por um rei – Luís XVI – incompetente, por uma total falta de perspectiva de vida, formando um cadinho de revoltas e desejo de vingança. A história gira em torno de um nobre francês que, alguns anos antes da revolução, emigra para Londres, renegando sua família, seu título de nobreza e todos os valores que isso representava, passando a viver de seu trabalho. Por isso, o título do livro, as duas cidades em oposição não apenas geográfica, mas também em relação às atribulações de uma em plena regurgitação popular e a segurança da outra, para os que conseguiam fugir das perseguições a qualquer pessoa que tivesse relação com o antigo regime, durante o período de terror, quando a guilhotina – a senhora Guillotine – cortava diariamente mais de sessenta cabeças, para gáudio de uma multidão sedenta de sangue. A história – ficcional, é sempre importante lembrar – é complexa, cheia de reviravoltas e surpresas, mas o contexto social e político é real e nos lança no meio de acontecimentos que só a pena de um grande escritor consegue colorir com as tintas vermelhas do sangue de centenas de condenados, nessa época terrível. E toda a trama nos leva a pensar profundamente no sentido e nas causas de uma revolta tão intensa, no ódio e no desejo de vingança de todo um povo cansado de ser espezinhado e humilhado. Com toda a sua violência, a sanguinolenta revolução ganha, com a ficção histórica, um quadro mais vivo em nossa mente, levando-nos a considerações mais profundas sobre o evento que mudou, apesar de tudo, a história do mundo, e colocou o povo, pela primeira vez nos tempos modernos, como protagonista de sua própria história e de seu destino, a despeito de tudo o que veio depois. Sem dúvida, um livro para se ler com o prazer de uma prosa bem elaborada, com a emoção à flor da pele com as reviravoltas da trama, mas também com os sentidos abertos para a compreensão do ser humano, seu destino e sua pretensa evolução em tantos aspectos históricos que, embora estejamos hoje num nível tecnológico avançado, nos alertam que, em termos estritamente humanos e sociais, ainda guardamos e conservamos muito do pensamento e dos costumes do século XVIII, uma época fundamental na história da humanidade. A boa ficção histórica sempre complementa o conhecimento estritamente erudito da pesquisa histórica, e nos ajuda a compreender melhor as motivações do ser humano através dos tempos.


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Reprodução, Bernardo Carvalho

 Reprodução, Bernardo Carvalho



Uma situação por que todos já passaram: alguém falando ao telefone a seu lado. Ouve-se apenas o monólogo, as perguntas e as respostas de quem está do lado de cá. Mais ou menos assim está estruturado o romance REPRODUÇÃO. Um jovem é preso no aeroporto com uma passagem para a China, ao tentar abordar sua professora de chinês que também tentava embarcar acompanhada de uma menina. Seu depoimento ao delegado é um longo capítulo em que só ele fala. Seu discurso é um emaranhado de conceitos e preconceitos mal alinhavados, como tirados da internet, um conhecimento vazio e pouco aprofundado de todos os assuntos. No segundo capítulo, também longo, o estudante, agora sozinho na sala de divisórias finas, ouve a conversa entre o delegado e uma mulher, talvez também delegada, mas só consegue ouvir as palavras da mulher, cujo discurso parece totalmente desconexo, mas que vai aos poucos revelando a trama por trás da abordagem da professora de chinês e seu sumiço, cuja fuga do aeroporto teve a participação de outro policial. No terceiro capítulo, volta a fala do estudante, agora confrontando o delegado, a partir do que ouvira. E quando toda a história mais ou menos absurda parece fazer sentido, um epílogo mais ou menos curto lança mais dúvidas do que certezas sobre todo aquele imbróglio. Daí concluímos que a realidade é que é absurda ou até mais absurda do que a ficção. E mais: que o excesso de informação mal digerida com que somos todos bombardeados a todo momento, a falta de crítica em relação a esse oceano de dados e notícias e opiniões, a falta de comprovação de tudo o que lemos e absorvemos superficialmente formam indivíduos que se dizem – como o estudante de chinês – bem informados, mas que na verdade provocam nesses indivíduos os mais variados preconceitos raciais, homofobia e intolerância de todos os tipos. O livro, de 2013, é um retrato do que vivemos hoje: há falas que vemos reproduzidas diariamente nas redes sociais e nos demais meios de comunicação. O que prova que pouco evoluímos, ou talvez até mesmo tenhamos regredido para uma sociedade cada vez mais desinformada e mais preconceituosa. Concluo afirmando que não é um livro fácil de ler, mas, depois do estranhamento inicial, conseguimos nos acostumar com as frases curtas e aparentemente desconexas das personagens que vão formando em nossa mente uma espécie de teia racional que deliciosamente se dissolve no final, para que possamos construir ou reconstruir o enredo que quisermos, dentro desse labirinto de informações – do livro e do mundo em que vivemos.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves

 Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves




Ibêjis, irmãos ou irmãs gêmeos. Assim são Kehinde e Taiwo, duas meninas de um lugarejo chamado Suvalu, no reino de Daomé, atual Benin, África, no início do século XIX, quando assistem ao estupro e assassínio da mãe e de seu irmão menor. Juntamente com sua avó, fogem para a localidade de Uidá, onde são capturadas e enviadas como escravas para o Brasil. Na viagem, a avó e a irmã morrem. Kehinde desembarca na Bahia, na Ilha de Itaparica, onde será companheira da sinhazinha, filha do dono da fazenda, mais ou menos da mesma idade que ela. Quando a menina branca ganha um preceptor para ensinar-lhe as primeiras letras, Kehinde consegue se aproximar e aprende também a ler. Será o que lhe dará o diferencial para uma trajetória complexa, mas exitosa em muitos pontos porque, ao fugir da ilha, depois de dar à luz um menino gerado de um estupro pelo dono da fazenda, conseguirá na cidade de São Salvador obter ajuda e, embora escrava, sobreviver para mais tarde comprar sua liberdade, participar das revoltas dos negros muçulmanos contra a escravidão, perder o primeiro filho, Banjokô, que era um abiku, criança destinada a morrer, ter um segundo filho que é vendido pelo pai e levado para o sul, enriquecer com seu trabalho, voltar à África, onde adota o nome de branca, Luiza, até o retorno ao Brasil, para morrer. Seu périplo antes do retorno à África, na busca inútil do filho perdido, leva-a a São Sebastião (Rio de Janeiro), São Paulo, Santos, Campinas, além de outras viagens que ela faz pelo país. A história dessa negra escravizada e empreendedora é uma longa e detalhada narrativa contada em primeira pessoa, enriquecida pelos usos e costumes da época e pela extraordinária mitologia das religiões africanas. Há uma quase certeza de que essa Kehinde/Luiza tenha sido a mãe de um grande abolicionista, um advogado notável da cidade de São Paulo, que conseguiu libertar muitos escravos com seu trabalho, esse o seu filho perdido. O mais notável de todo o livro foi a forma como a autora descobriu os escritos dessa mulher: na ilha de Itaparica, para onde ela se mudou, para buscar tempo e sossego para escrever sobre a revolta dos malês, encontrou uma garota numa igreja, que lhe serviu de guia. Dessa menina, a pesquisadora tirou inúmeras fotografias e prometeu voltar um dia para lhe presentear com as fotos. Ao encontrar a casa da garota algum tempo depois, o irmãozinho dela lhe mostrou alguns desenhos que ele fazia em folhas de papel antigas, no verso das quais havia uma escrita estranha, e encontrou um maço desses papéis servindo de apoio à mesa de centro da sala. Ganhou os papéis e deslindou a história de Kehinde, misturando realidade e ficção em sua narrativa, para nos fornecer uma das mais belas, tocantes, minuciosas histórias da vida dos escravizados no século XIX, com toda a cultura da época, os usos e costumes, a política e as revoltas, as crenças, a culinária, as moradias, tanto no Brasil como na África. Sem dúvida que, apesar de suas mais 950 páginas, é um livro que se lê com o prazer das narrativas que nos prendem da primeira à última página, um oceano de informações, peripécias, dores e alegrias, festas e perigos, e que terminam deixando em nós um gosto de “quero mais”.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Indiscreto, Charles Dubow



Indiscreto, Charles Dubow



Um ditado popular infame e machista diz “água de morro abaixo, fogo de morro acima e mulher quando quer dar ninguém segura”. Talvez devêssemos amenizar a conclusão desse adágio para “...o ser humano quando se apaixona ninguém segura”, para resumir o tema desse livro – INDISCRETO – do estadunidense Charles Dubow. Porque é de paixão que, como maré cheia, assola a praia e leva tudo de roldão, nos fala o autor, nessa comovente história de mais um triângulo amoroso da literatura. Além desse – podemos dizer – clichê, há ainda outros: um casal bem-sucedido na vida e no amor, casados há mais de vinte anos; ele, escritor premiado; ela, bela e inteligente mulher dedicada ao marido e às contínuas festas que eles promovem ou de que participam, com uma variedade de amigos e conhecidos; um filho que, embora tenha nascido com problemas cardíacos, preenche a felicidade do casal; ricos, ambos na faixa dos 40, vivendo entre Nova York e sua espaçosa casa de praia. Um dia, intromete-se nessa vida paradisíaca uma bela mulher, de seus 26 anos, namorada de um desses amigos e que se torna – depois de rompido o namoro – uma espécie de agregada à família. E o vendaval acontece: ela seduz o marido fiel e feliz. Claro, a tempestade terá as consequências de que o moralismo da sociedade estadunidense e de quase todo o mundo está farto de se saciar. Como dizia o mestre Machado, “ao cabo só existem ideias velhas caiadas de novo”. Mas a caiação, ou seja, a estrutura do livro, o próprio enredo e até mesmo a forma como é contada a história, não nos deixa na mão: consegue manter o suspense e levar-nos a um final que chega a nos surpreender e comover. Enfim, um bom romance, para se ler num fim de semana, como sói acontecer com um bestseller bem escrito.


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Essa gente, Chico Buarque de Holanda



Essa gente, Chico Buarque de Holanda




Manuel Duarte é o autor de um best-seller dos anos 90. Agora, precisa retomar sua carreira de sucesso, mas está em crise. Esse o fio condutor da obra. Os capítulos são curtos e, na verdade, constituem uma espécie de jogo de montar, com vários narradores, inclusive o próprio narrador onisciente da trama, em forma de diário que vai construindo as várias relações entre as personagens, em que se misturam ficção dentro da ficção, trechos do livro do Manuel Duarte; realidade, os conflitos do protagonista com suas ex-mulheres e com seu filho e suas caminhadas constantes pelas ruas do Rio de Janeiro; delírio, sonhos e imaginação, num mosaico de contradições em que transparece a própria condição do País, já dividido e fraturado por ideologias opostas, que não se suportam e se agridem, no ano de 2019. Desde “Meu irmão alemão” que Chico vem experimentando técnicas e revelando-se não só um bom contador de estórias, mas também um artesão da ficção, mostrando engenhosidade e domínio dessa arte que parece um tanto desprestigiada no atual momento de nosso País, o romance. Que venham outros livros, com as bênçãos da criatividade, desse talentoso e, por vezes, incompreendido Chico Buarque de Holanda. Os bons leitores saberão agradecer.


sábado, 1 de janeiro de 2022

A grande gripe, a história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal da história da humanidade, John M. Barry

 A grande gripe, a história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal da história da humanidade, John M. Barry




Sem dúvida, nos tempos atuais, um livro impactante. Não só pela história de uma pandemia ocorrida há um século, como por várias semelhanças entre ela e a pandemia desse início do século XXI, a da covid-19. Mas, vamos falar do livro. E da gripe espanhola. Primeiro, a ressaltar que o autor nos coloca a par, de uma forma extraordinária, a situação da medicina do final do século XIX e início do
XX, principalmente nos Estados Unidos. Aquela que foi chamada a “fase heroica da medicina”, quando, na verdade, todo o heroísmo ficava por conta dos pacientes que se submetiam aos brutais tratamentos oferecidos pelos “médicos” dessa época. Coloco a palavra entre aspas, porque, na verdade muito poucos formados em medicina podiam ser considerados médicos, já que, para se formar numa faculdade de medicina, bastava saber ler e escrever, matricular-se, assistir a seis meses de palestras e o “doutor’ recebia seu diploma sem nunca haver chegado perto de um paciente. E haja tratamentos baseados em crendices, em tentativas e erros, ou até mesmo na ideologia do médico. E mesmo os que tinham formação mais esmerada não conseguiam se livrar de tratamentos absurdos, como foi, durante muito tempo, a sangria, com o uso de sanguessugas, ou a crença em miasmas que infestavam o ar e provocavam doenças. O início do novo século marca o surgimento da medicina científica, quando médicos e cientistas renomados enfurnaram-se em laboratórios, para fazer pesquisa, pesquisa médica, agora em novos parâmetros, porém ainda com instrumentos e condições extremamente diferentes em relação ao que se dispõe hoje. No entanto, fizeram descobertas extraordinárias, que mudaram a forma de se ver a doença e os doentes. Quando a gripe espanhola surgiu – possivelmente no interior dos Estados Unidos – a ciência da época fez esforços imensos para descobrir a origem da doença, mas isso só foi acontecer muitos anos depois. A gripe pegou a humanidade no final da primeira grande guerra, e o exército estadunidense foi o encarregado de levá-la para a Europa e de lá, em pouquíssimos meses, ela se espalhou por todos os rincões do planeta. E ocorreu em ondas que só se dissiparam já no início da década de vinte, sem que o vírus da influenza aparecesse nas pesquisas dos grandes cientistas da época. Buscavam, erroneamente, uma bactéria. A mortandade foi geral, e até hoje não se sabe ao certo quantas pessoas morreram, um número entre 50 e 100 milhões, de todos os continentes, de praticamente todos os países. O livro traça um retrato bastante amplo da pandemia e de todos os cientistas que se debruçaram, em seus laboratórios, para descobrir um soro ou um medicamento que curasse a gripe; e vai além: mostra-nos como a gripe se espalhou pelo mundo diante da inércia absoluta de quase todos os governos, que quase nada fizeram para ajudar no combate à doença. Alguma semelhança com os dias atuais? Os relatos são todos estarrecedores, algo inédito realmente na história, algo que paralisou o mundo e anestesiou a humanidade, apesar de inúmeros seres devotados terem se lançado a campo e morrido com a doença, no intuito de combatê-la, dentre eles muitos dos cientistas, médicos e enfermeiras que se entregaram à linha de frente no atendimento da imensa quantidade de infectados. Está, portanto, relatado um período fundamental da história da medicina, quando se inaugura realmente a medicina científica, com a devida citação e homenagem de todos os pioneiros e suas contribuições para que chegássemos ao século XXI com uma postura radicalmente diferente de quase todos os profissionais médico. Digo quase, porque, se o caro leitor atentar para os fatos ocorridos entre 2019 e 2021, na medicina ocidental, irá descobrir que ainda há muitos médicos “fundamentalistas”, no pior sentido da palavra: se em 2018, receitavam quinino, um medicamento para malária, para combater a gripe, durante a atual pandemia vimos muitos “médicos” receitando cloroquina, também um medicamento para malária, para “prevenir” a covid-19. O tempo passa, a ciência transforma-se, aprofunda seus conhecimentos, evolui, mas muitos seres humanos parece que se fossilizaram no tempo e mantêm seu cérebro funcionando no diapasão de séculos atrás. Por isso, eu acredito, a importância de ler obras como esta.