sábado, 28 de maio de 2022

Amálgama, Rubem Fonseca

 Amálgama, Rubem Fonseca


Sem entrar em detalhes lexicológicos, amálgama significa mistura. E é isso o livro de Rubem Fonseca: uma mistura de textos, ou seja, pequenos contos e crônicas, e até poemas, pelos quais o autor faz desfilar diante de nossos olhos personagens marcados por sentimentos os mais diversos: dor, tristeza, amargura, raiva, fracasso, ternura, amor. Tudo isso marcado por um estilo rápido e contundente, sem meias palavras, como é o de seu feitio. Não há muita elaboração nos enredos das pequenas histórias de vida, nem qualquer psicologismo. São flashes que espocam e iluminam um lado quase sempre obscuro da personalidade humana, deixando para o leitor o susto e a reflexão sobre as atitudes ou os pensamentos das personagens e, às vezes, até mesmo a conclusão do evento esboçado. Não há muito mais o que dizer, Rubem Fonseca já alcançou o cânone de escritor moderno e tudo o que escreve tem sua marca e a marca de seu talento.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Cães Negros, Ian McEwan

 



Cães Negros, Ian McEwan



Num longo “prefácio”, o narrador justifica o que vem depois: órfão ainda criança, convive com a complicada vida sentimental da irmã mais velha e, depois, com a sobrinha praticamente “abandonada” pela mãe. Por se sentir abandonado de pais, “adota” os pais de amigos e conhecidos, com quem acaba aprendendo as lições da vida e formando o seu caráter. Aos trinta anos, casa-se com Jenny, filha de June e Bernard e, claro, encontra nos sogros seus segundos pais. Como tinham uma trajetória de vivência no partido comunista inglês e participado da segunda guerra, busca conhecimentos de suas vidas, para escrever uma biografia do casal que já há muitos anos não vive juntos. Nas entrevistas com ambos – June internada num asilo e Bernard durante a visita de ambos a Berlim, durante a queda do muro, e nos seus escritos – descobre um acontecimento misterioso que alterara para sempre a concepção de mundo da sogra. Bernard e June apaixonaram-se perdidamente em 1946 e tinham visões de mundo semelhantes em relação à política. Durante a lua de mel, viajam para a Itália, onde prestam serviço voluntário de ajuda a vítimas da guerra. Ao encetar a viagem de volta, fazem no interior da França um longo percurso a pé, durante o qual June, num determinado momento, tendo se adiantado ao marido, vê-se sozinha diante de dois enormes cães negros que a atacam. Consegue ferir um deles e escapar com vida. Diante da narrativa de um maire da aldeia onde buscam abrigo de que poderiam ser cães sobreviventes do período de perseguição nazista, começa a mudar sua percepção de mundo, tornando-se mística, o que a opõe às concepções materialistas de seu marido. Esse é o ponto central da narrativa, que ganha contornos de escolha ética: a saída para a humanidade ultrapassar o seu lado mais negro está numa visão espiritualista ou numa visão materialista do mundo? Sem dúvida, um dos melhores romances deste inglês que nos tem brindado com grandes narrativas, o que o torna um dos grandes escritores de nosso tempo.


domingo, 22 de maio de 2022

Esaú e Jacó, Machado de Assis

 Esaú e Jacó, Machado de Assis

Na bíblia, Rebeca privilegia o filho Jacó em detrimento de Esaú, o que os torna inimigos irreconciliáveis. Em Machado de Assis, a causa das desavenças entre os gêmeos Pedro e Paulo parecem vir “ab ovo”, isto é, desde que estavam no ventre da mãe, não havendo, depois de nascidos, uma causa específica. Já começa aí a ambiguidade, marca do escritor, na história dos gêmeos que se apaixonam pela mesma mulher, embora divirjam entre si em quase tudo, além de temperamentos opostos. Narrado em terceira pessoa pelo conselheiro Ayres, velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, que muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista, tem como pano de fundo o final da monarquia e o início conturbado, politicamente, da república. Entre os gêmeos, Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Quando a jovem por quem ambos estão apaixonados – e que não se resolve por nenhum dos dois – morre, juram ambos um pacto de amizade, rompida quando se tornam deputados por partidos opostos. Só farão outro pacto semelhante no leito de morte da mãe, no final do romance. Será que também será cumprido? Não há o que se possa elogiar mais em Machado de Assis: sua prosa é sempre deliciosamente eivada de pequenos mistérios, de situações ambíguas, de ironias, num estilo cativante e... exclusivamente machadiano!


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Cidade aberta, Teju Cole

 Cidade aberta, Teju Cole



Julius é jovem psiquiatra residente no hospital Columbia Presbyterian. Originário da Nigéria, carrega em si uma grande solidão. Por isso, após o trabalho árduo no hospital, faz longas caminhadas por uma Nova Iorque dissecada e às vezes minuciosamente descrita como uma cidade complexa, traumatizada ainda, após os atentados de onze de setembro. O leitor não precisa conhecer a cidade, basta acompanhar as descrições e os detalhes históricos que o narrador, o próprio Julius, vai tecendo ao longo da narrativa, mesclados com sua própria vida e seu passado, seus poucos amigos e suas reflexões sobre música e literatura, para conhecer e viver a cidade que vai aos poucos desvendando sua história, seus habitantes e a vida do narrador. Há momentos realmente muito trágicos, como o assalto e o espancamento que ele sofre, praticados por três garotos negros, ou a revelação de um acontecimento de 18 anos atrás, durante uma festa de amigos. Há momentos de grande beleza e melancolia, como a descrição do enterro de seu pai, um pai ausente, quando ainda garoto, na sua terra. Ou, ainda, a ida a um concerto em que um maestro famoso rege a nona sinfonia de Mahler. Enfim, um belo passeio pela mente de uma personagem cativante e misteriosa, em caminhadas pela cidade aberta a todas as etnias, a todas as tendências e a todos os conflitos, belezas e misérias da civilização ocidental, até o final surpreendente e melancólico aos pés do símbolo dessa cidade cosmopolita, a estátua da liberdade, que nos leva a uma reflexão sobre o quanto de belo e de bárbaro guarda sua história.


segunda-feira, 16 de maio de 2022

A grande fome, John Fante

 A grande fome, John Fante


Conhecido principalmente pelo livro “Pergunte ao pó”, a obra que “revela” às gerações mais novas a obra de Thomas De Quincey (“Diário de um comedor de ópio”, do século XIX), John Fante é um dos expoentes da geração estadunidense pré-beatniks. Os contos reunidos nessa antologia foram descobertos pelo biógrafo e estudioso de sua obra Stphen Cooper, após sua morte, encontrados num baú conservado por sua viúva. São narrativas que exemplificam o estilo único de John Fante e justificam sua inserção na contracultura dos Estados Unidos dos anos 30 e 40. Desfilam personagens mais ou menos comuns em seus escritos, ou seja, imigrantes, escritores miseráveis, crianças travessas e pessoas ordinárias ou extraordinárias de seu vasto universo de “ordinary people”, vagabundos e marginalizados. Acrescenta-se a esses contos – deliciosos e surpreendentes – o prefácio que ele escreveu (e ficou inédito) para o seu livro mais conhecido, “Pergunte ao pó”. Para ler com o prazer de um “divertimento sério”, nem por isso menos profundo.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Anne de Green Gables, Lucy Maud Montgomery

 Anne de Green Gables, Lucy Maud Montgomery


A história de Anne Shirley, a primeira de uma série de oito livros, começa com um engano. Marilla e Matthew Cuthbert, dois irmãos solteirões, que moram na propriedade chamada Green Gables, na Prince Edward Island, no Canadá, resolvem adotar um órfão para ajudá-los nos trabalhos da fazenda. No entanto, a pessoa encarregada de buscar esse menino, traz-lhes uma menina. Pensam seriamente em devolver a garota de 11 anos, ruiva, sardenta e muito, muito falante. Acabam por se afeiçoar a ela. Anne é uma menina especial. Além de sua tagarelice, o que contraria o quase mutismo do casal de irmãos, tem uma imaginação tão fértil, que a leva a sempre sonhar com um mundo encantado de belezas e mistérios. Por isso, ocasiona vários problemas, não só para si mesma, como também para o casal que a adotou. Sua capacidade de ver sempre o lado belo e positivo de tudo, seu amor pela vida, pela natureza e pelos livros acabam levando-a a ser adotada também pela comunidade. Esse primeiro livro relata as peripécias, as amizades, os desafios e os momentos difíceis de Anne desde sua chegada até os 16 anos, quando precisa tomar uma decisão importante na sua vida. A prosa da autora canadense é leve, com muitas descrições da natureza, o que torna a leitura da obra bastante agradável e deve ter contribuído pelo seu sucesso, desse a primeira edição, em 1908, entre principalmente os jovens. Apesar de defender valores tradicionais do século XIX, há princípios básicos que devem fazer parte da formação da juventude, como a ética, a solidariedade, a honestidade e a importância do trabalho, da amizade, do amor à natureza. Pode-se dizer que a saga de Anne é um pouco do reflexo do sucesso de Alice, de Lewis Carrol, num diapasão de realidade, embora próxima de um romantismo tardio e ainda apreciado por muitos leitores do mundo todo, com a tradução para mais de 20 idiomas e a adaptação para o teatro, o cinema e a televisão.


terça-feira, 10 de maio de 2022

As aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho, Lewis Carrol

 As aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho, Lewis Carrol


Os dois livros emblemáticos de Lewis Carrol tiveram tantos comentários, tantos textos publicados (e lidos), tantos filmes neles baseados, que o interesse na sua leitura se dissipou – as histórias eram conhecidas demais. Então, um dia, me interessei um pouco pela vida do autor: “descobri” que ele era apaixonado por meninas e odiava meninos, algo mais ou menos óbvio em suas biografias que, por sinal, quase sempre deixavam no ar a ideia de que ele tinha tendências pedófilas, para dizer o mínimo. No entanto, essas mesmas biografias nunca conseguiram provar nada contra Carrol. Ficava o estranhamento. E afirmava-se que Alice Riddell, sua preferida entre dezenas de garotinhas com quem ele se correspondia, de quem ele se aproximava, com quem ele passeava (com as devidas autorizações paternas) e para quem ele inventava centenas de jogos, Alice era a sua paixão recolhida, afirmando mesmo alguns biógrafos que seu rompimento com a família da garota deveu-se a uma possível intenção de casamento futuro com ela. Também me chamou a atenção o fato de que Lewis adorava retratar suas amiguinhas, muitas vezes nuas (com o consentimento dos pais!), tendo ficado um grande acervo dessas fotografias, menos as de nudez, que a família (dele) preferiu destruir, para não alimentar talvez os boatos sobre as tendências sexuais do autor (diz-se que restaram apenas quatro). Mas o que me levou a ler a obra de Lewis foi uma notícia publicada na Inglaterra, com pouca repercussão internacional: Carrol era realmente apaixonado não pela garota Alice, mas por sua mãe, esposa do amigo muito próximo. E que o tal rompimento ocorreu quando o casal descobriu essa paixão. Assim, se verdadeira (e parece que é), desfaz-se o mito da Alice-paixão, e praticamente todas as teorias psicanalíticas (que exploraram à exaustão a paixão do autor por menininhas e, em especial, por Alice) caíram por terra. Restou o autor com seu estranho gosto de preferir a companhia de garotinhas. Mito desfeito, procurei ler os seus dois livros, agora com o olhar de quem gosta e vive da boa literatura, embora tenha já há muito ultrapassado a idade de apreciar leituras voltadas para o público infantil e juvenil e, fechando ainda mais o leque, para menininhas pré-adolescentes. Mesmo assim consegui me divertir com os dois livros: o non sense levado ao extremo, com centenas de jogos de palavras e de piadas relacionadas todas elas aos jogos que o autor inventava para divertir suas amiguinhas, além de muitas e muitas referências a situações de sua convivência com elas e de muitas brincadeiras com poemas de dezenas de autores e com situações da época, século XIX, que, na Inglaterra vitoriana ganha aspectos diferenciadores, na linguagem, nos costumes, nas artes, no vestuário, na vida cotidiana enfim. “O país das maravilhas” é recheado de símbolos que fazem a delícia dos psicólogos e “através do espelho”, a delícia de quem gosta de jogos, principalmente de xadrez, e ambos fazem a delícia de quem aprecia uma boa história recheada de citações literárias, de trocadilhos, de metáforas, de referências filosóficas e de jogos de palavras, além do próprio enredo mirabolante de ambos os livros. Enfim, são obras complexas para as garotinhas de hoje, que talvez só apreciem mesmo o enredo mirabolante, sem as inúmeras implicações subentendidas. Finalizo meu comentário (que já se alongou além do necessário) com o fato de que a edição que eu li (e que traz ambos os livros e mais um capítulo do “país das maravilhas” descartado pelo autor) encerra centenas de notas explicativas e detalhadas de cada uma das passagens dos dois livros, além das ilustrações de John Tenniel, elaboradas segundo recomendações do autor. Devo confessar, finalmente, que, embora tenha apreciado a leitura de ambos os livros, acabei me divertindo mais com os detalhes saborosos das notas explicativas do que exatamente com as aventuras de Alice no seu país das maravilhas e do que ela encontrou atrás do espelho.


sábado, 7 de maio de 2022

A Escola dos Annales: A Revolução Francesa da Historiografia 1929-1989, Peter Burke

 A Escola dos Annales: A Revolução Francesa da Historiografia 1929-1989, Peter Burke



Um livro para historiadores que qualquer pessoa minimamente interessada em história pode ler com prazer. Afinal, trata-se do conhecimento e da trajetória de uma revista que virou escola e que realmente revolucionou os estudos historiográficos a partir do segundo terço do século XX até nossos dias. Defendiam seus articulistas uma visão do passado que fosse além dos eventos, dos fatos que narravam apenas feitos de governantes, militares etc., e incorporasse, dentro de uma perspectiva de determinado tempo, seja curto ou longo, todas as circunstâncias ao redor desse tempo e desses eventos, incluindo os cidadãos comuns e as mentalidades da época. Para isso, o historiador devia lançar mão não só dos testemunhos/documentos da historiografia, mas incorporar conhecimentos de outras áreas, como a psicologia, a geografia, a economia, a estatística etc. Daí terem nascido obras que passam longe da narrativa tradicional, mas que iluminam determinados períodos através correntes como micro história e a história das mentalidades. O livro faz um levantamento de todos os participantes, desde os criadores dos Annales, suas obras mais importantes e sua linha de pesquisa, traçando um panorama da historiografia desses desbravadores entre 1929 e 1989. Deles, há reflexos até nossos dias, claro, com muitos historiadores refazendo as trilhas abertas pelos Annales, aprofundando suas teorias ou, até mesmo, contestando algumas delas, mas sem deixar de se referir com respeito a essa Escola que teve no Brasil, através das aulas de Braudel e de Lévi-Strauss (que aqui estiveram, lecionando na USP, no século passado), seguidores como Gilberto Freire.


quarta-feira, 4 de maio de 2022

Apologia da história ou o ofício do historiador, Marc Bloch

 Apologia da história ou o ofício do historiador, Marc Bloch



Para que serve a história? É a pergunta de um filho que Marc Bloch procura responder neste livro. E a partir de uma de suas maiores convicções, a de que o historiador tem a obrigação de difundir e esclarecer, sabendo falar ao mesmo tempo aos doutores e aos estudantes, ele desenvolve sua tese de que é preciso conhecer o passado para iluminar o presente. E mais: que o historiador tem como matéria o homem (no sentido amplo do termo) colocado no tempo e que o passado não é algo estático, mas em construção, em função de novas metodologias para interpretá-lo. Diz claramente: “A própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda.” Seu objeto é “o homem”, ou melhor, “os homens”, “os homens no tempo”. Os testemunhos – documentos – do passado precisam ser lidos e interpretados e a função do historiador é saber fazer as perguntas certas a esses documentos, dentro de uma metodologia que inclui perceber que esses testemunhos mentem muitas vezes, mas mesmo a mentira contada neles pode ser tão ou mais útil para o entendimento de seu tempo histórico do que até mesmo quando são verdadeiros. E deve ainda mais o historiador recorrer a múltiplas fontes, a múltiplas técnicas e a muitos outros conhecimentos que o possam auxiliar na tarefa de interpretar o passado e não julgar o passado, como muitos historiados fazem. Também é objeto de preocupação para o historiador o fato de que a história, mesmo tratada como uma ciência, não conseguiu desenvolver um vocabulário específico como as outras ciências. O historiador precisa, portanto, dispor de habilidade para, ao tratar de coisas e acontecimentos do passado, não usar um vocabulário que não lhe seja adequado evitando o anacronismo. Critica a divisão da história em períodos relacionados a “hegemonias de natureza diplomática e militar” e lembra que Voltaire já havia protestado que “... de 1400 anos para cá, não houve nas Gálias senão reis, ministros e generais”, abrindo novas perspectivas para o que veio a se denominar posteriormente de micro-história. Enfim, neste pequeno volume, o autor destrói mitos e aponta caminhos para um olhar absolutamente revolucionário nos estudos históricos. Isso, para um livro escrito numa situação de total falta de condições de consulta a fontes, apenas usando sua prodigiosa memória, quando foi preso e depois executado pelos nazistas em 16 de junho de 1944, deixando sua obra inacabada. Para os historiadores de hoje, um livro de cabeceira; para nós, leigos, mas que gostamos e precisamos de entender o presente e, principalmente, nós que temos a certeza de que só podemos compreender o nosso tempo se tivermos noção clara do passado, um precioso livro de reflexão e de abertura para outras leituras. Por isso, termino essa resenha com uma de suas tantas e inúmeras frases lapidares, pinçada desse livro fabuloso: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado.”


domingo, 1 de maio de 2022

44 cartas do mundo líquido, Zygmunt Bauman

 44 cartas do mundo líquido, Zygmunt Bauman



“O mundo que chamo de “líquido” porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraíam ontem, que amanhã se distanciará das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje); as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição.” – Assim Zygmunt Bauman conceitua o que ele chama de “mundo líquido”. E é sobre esse mundo, moderno, confuso, complexo, instável, que suas 44 “cartas”, escritas no final da primeira década deste século, traçam considerações e tiram lições. Os assuntos são os mais variados: desde sexo virtual até a capacidade humana de cometer maldades. Nada escapa à pena arguta do sociólogo polonês radicado na Inglaterra, falecido em 2017, aos 92 anos. Infelizmente, não sobreviveu para escrever sobre os anos da pandemia, nem sobre essa estúpida guerra da Rússia contra a Ucrânia, neste 2022. Seu mundo líquido continua cada vez mais instável, mais confuso, mais complexo. Pode-se discordar de algumas das suas colocações e proposições, mas não é possível que elas não o façam pensar e buscar entender uma época que escapa a qualquer entendimento. Por isso, com certeza, ainda lemos e nos arrepiamos com suas análises, com suas, às vezes, visões e diatribes não muito elogiosas sobre o nosso tempo. Se vivemos no mundo da internet, das fake news e da enxurrada de informações que inundam nosso dia a dia, é preciso parar um pouco e ler com calma e tranquilidade as ponderações de alguns pensadores do nosso tempo, para recarregarmos as baterias e não sermos engolfados pela “loucura e insensatez de tempos tão intensos”, o nosso momento no rio da História, e imaginar o que iremos deixar para o futuro, se futuro houver.