sexta-feira, 30 de abril de 2021

Barroco Tropical, José Eduardo Agualusa



Barroco Tropical, José Eduardo Agualusa


O escritor Bartolomeu Falcato e a cantora pop-star Kianda são amantes. Ao voltar de carro para Luanda, uma mulher cai do céu diante deles. Esse evento insólito desencadeia uma narrativa de tirar o fôlego, de fazer-nos emocionar e participar da vida de um país cheio de contradições, preconceitos, tradições estranhas, corrupção, tráfico de armas e de drogas, golpismo. Para traçar todo esse painel, a que não falta um anjo negro, o autor faz-nos viajar para o futuro próximo, uma Luanda de 2020, uma cidade à beira do caos, convivendo com todo tipo de miséria humana, misticismo e exploração juntamente com arroubos de modernidade, em edifícios imensos, onde a classe dominante mora em andares superiores, confortáveis, deixando aos miseráveis os porões sujos e mal iluminados. Uma cidade que parece em ruínas antes mesmo de se ter construído, uma ruína futurista. A trama é narrada tanto pelo escritor quanto pela cantora Kianda, com grande intensidade dramática e um sem-número de personagens fascinantes e quase kafkianos. Tem o autor momentos que lembram a literatura de Eduardo Galeano e, ao mesmo tempo, flerta com o realismo mágico. O barroco, portanto, não está apenas na construção da trama, na visão de uma cidade complexa, mítica e quase mística, mas também nas várias citações de autores e artistas sul-americanos e europeus, enredados como cipós de uma floresta tropical. Realmente uma construção barroca da literatura lusófila erguida com a perícia magistral de um grande autor.


terça-feira, 27 de abril de 2021

O Castelo de Otranto, Horace Walpole



O Castelo de Otranto, Horace Walpole


Escrito no século XVIII (1764), a história se passa no século XIII. “Manfredo, príncipe de Otranto, tinha um filho e uma filha. Esta, uma linda donzela de dezoito anos, chamava-se Matilda. O filho, Conrado, era quase três anos mais novo, um rapaz caseiro, doentio, de disposição nada promissora. Ainda assim era o preferido de seu pai, que jamais mostrara quaisquer sinais de afeto por Matilda”. Assim começa a história. E Conrado está-se preparando para casar-se com uma jovem, filha do Marquês de Vicenza, Frederico, que está há anos perdido numa cruzada. Mas um misterioso e enorme elmo, vindo não se sabe de onde, mata o jovem. Desesperado muito menos pela morte do filho do que por não ter um filho homem a quem deixar o castelo que, segundo uma profecia, seria retomado pelos antigos donos, Manfredo propõe casamento à noiva do filho, Isabel, que foge desesperada para um convento próximo. Na perseguição e busca de Isabel, muitos eventos misteriosos ocorrem e surgem outras personagens, como o filho do monge, Teodoro, que vai se apaixonar por Matilda. A história toda se passa entre reviravoltas provocadas por revelações inesperadas e pelo sobrenatural, que age para que a profecia seja cumprida, até o desenlace final, com cenas fantasmagóricas. Por essa razão, Horace Walpole é considerado o primeiro autor de uma história de terror, tendo influenciado Edgar Allan Poe, Lovecraft e muitos outros. Um livro para se ler quase de um só fôlego, uma narrativa baseada na ação, sem grandes aprofundamentos psicológicos, mas fascinante pelo enredo bem urdido, na mistura de real e sobrenatural.


sábado, 24 de abril de 2021

Quarup, Antonio Callado



Quarup, Antonio Callado



Assim, de repente, deu-me uma grande vontade de reler esse livro, do qual me lembrava de poucos episódios: o medo do padre Nando, o protagonista, de ir para uma missão no Xingu e sucumbir aos apelos da carne diante das índias peladas; a personagem Sonia, mulher acossada por dois amantes, que, no Xingu, apaixona-se por um índio e some na mata com ele, deixando como último rastro um vestido colorido, preso a um arbusto; a cerimônia do quarup, quando os índios constroem totens para homenagear os seus mortos e fazem uma grande festa, e a expedição ao centro geográfico do país, onde encontram uma imensa panela de formigas saúvas (um dos mais longos e belos capítulos do livro). Mas, o que a memória não guardou: que esse é um dos livros emblemáticos da nossa busca de entendimento do que é realmente o Brasil. A história começa em 1954, e a cerimônia do quarup, para a qual haviam sido convidadas muitas autoridades da república, inclusive o próprio presidente, coincide com o suicídio de Getúlio, e termina emblematicamente logo após o golpe de 1964 (o livro foi escrito em 66). O Brasil, durante esse período, passava por grandes transformações, em todas as áreas, principalmente na economia, com um desenvolvimento expressivo, alavancado a um custo alto, sem dúvida, mas havia a perspectiva de saída do terceiro-mundismo crônico. No aspecto social, muito havia por fazer e a ebulição nos campos, principalmente conduzida a partir da discussão de uma reforma agrária e de outras reformas de base, propostas por João Goulart, prometia um país mais justo, menos pobre. A trajetória do padre Nando, que abandona a batina pela liberdade e até por uma certa libertinagem feliz, simboliza bem esse momento. Após sua estada no Xingu, na luta pelo estabelecimento das primeiras reservas indígenas, volta para sua terra, Pernambuco, onde desenvolve um intenso trabalho de alfabetização e conscientização dos homens do campo oprimidos e explorados pelos usineiros. Mas, aí vem a porrada do golpe e todos os planos se esboroam, como se esboroa o sonho de um país melhor. Porém, a luta continua, e o final do livro sinaliza claramente que, sem essa luta, sem muito esforço, os problemas não serão superados. E então eu entendi por que meu inconsciente me levou a reler esse livro: guardadas as devidas diferenças históricas, o momento presente tem muito a ver com a paulada que levamos em 1964.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A revolta de Atlas, Ayn Rand

 

A revolta de Atlas, Ayn Rand



“Quem é John Galt?” – como um estribilho, esta pergunta, que indica mais um desalento, um desabafo diante de uma situação que se agrava e se deteriora, e para a qual não há solução, repete-se dezenas de vezes ao longo do livro. A resposta só virá muitas e muitas páginas depois, quando, enfim, a personagem John Galt toma o protagonismo da história. Mas, vamos começar pelo princípio. O que é o romance “A revolta de Atlas”? A longuíssima narrativa – dividida em três volumes, perfazendo mais de 1.200 páginas (haja fôlego!) é um romance de tese. Através dele, a autora, Ayn Rand, expõe suas teses filosóficas e políticas. Trata-se de teses que influenciaram e ainda influenciam muitos pensadores e políticos pelo mundo afora. Seu “objetivismo” – segundo o qual o mundo é o que é, sem nenhum misticismo ou romantismo – leva a uma posição política próxima do que hoje denominamos “liberalismo”: defesa absoluta da livre inciativa, estado mínimo (ou defesa da não interferência do estado na inciativa privada), meritocracia (a cada um segundo o seu mérito, o seu valor), todo o poder aos empresários (e vamos desenvolver melhor esse tema mais adiante) e, por isso, a questão dos impostos torna-se crucial (o imposto não pago ao estado pelos empresários reverte-se em crescimento econômico, em empregos etc.), individualismo ou egoísmo ético (segundo o qual os seres humanos podem e devem existir como iguais e independentes, sem sacrificar os outros para si), o “princípio do negociante” (liberdade para os seres humanos estabelecerem os valores que sustentam suas vidas) etc. E todas essas teses – e seus detalhes – estão lá, na história quase distópica que ela constrói através de seus personagens centrais: Dagny Taggart, vice-presidente da empresa ferroviária Taggart Transcontinental; Hank Rearden, líder da empresa siderúrgica Rearden Metal; Francisco d’Anconia, milionário argentino com minas de cobre espalhadas pelo mundo; e, claro, o misterioso John Galt. O cenário: os Estados Unidos num tempo indefinido, em que predominam as grandes empresas voltadas à siderurgia e ao transporte ferroviário; um país, no entanto, dominado por um governo populista, incompetente e corrupto. Populista no sentido de que prega um tipo de “socialismo”, de proteção do povo diante da ganância empresarial, enquanto, por incompetência, não consegue resolver a questão das desigualdades sociais, porque, no fundo, legisla e governa conforme seus próprios interesses. Os empresários, nesse mundo em decadência, são, então, apresentados como verdadeiros heróis, indivíduos que, embora sejam egoístas e trabalhem em prol do aumento de sua riqueza, são extremamente justos e buscam, através de suas empresas e de suas ações, a grandeza da pátria, sendo, portanto, merecedores do poder, que a eles deve ser dado, para resolverem com o seu liberalismo (talvez mais utópico do que o próprio socialismo) todas as misérias sociais e econômicas. Nesse sentido, pode-se dizer que “A revolta de Atlas” é o oposto de todas as teorias e filosofias socialistas e marxistas do século XIX, contrapondo-se, em termos literários, aos grandes autores dessa época, sejam os românticos como Victor Hugo, ou os realistas como Balzac, Zola, Dostoievski e tantos outros. Ousaria mesmo dizer que ele é um anti “Germinal” (e se você leu esse grande romance de Zola, talvez me dê razão). As teses de Rand, como já disse, estão todas na longa trajetória de seus personagens e também em longas digressões que ela coloca no discurso que eles proferem em defesa de suas ideias e ideais. Como literatura, apesar de alguns pecadilhos, prende nossa atenção do princípio ao fim, o que não é pouco pela extensão da obra. Como conhecimento do pensamento liberal dos nossos tempos, sem dúvida permite que compreendamos a repercussão que esse pensamento tem tido em nossa vida, e o que ele pode ainda representar, quando defendido por políticos e pelos poderosos que nos governam. E não sei, realmente, se vamos querer saber “quem é John Galt”.


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Homo Ludens, Johan Huizinga

Homo Ludens, Johan Huizinga


“... o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’.” A partir dessa definição de jogo, o autor, através de sua vasta erudição, nos leva a compartilhar com ele a ideia de que o ser humano tem sua história e sua cultura quase toda pautada pelo jogo ou em termos de jogo, desde atividades tão pouco “lúdicas” como a guerra, até os jogos de tabuleiro, como o xadrez. Não que a cultura humana tenha nascido do jogo, mas nasceu no jogo, ou seja, assim como muitos animais, como os cães, quando jovens, brincam alegremente uns com os outros, e também assim agem as crianças, levamos pela vida o sentido lúdico em quase tudo o que fazemos. Mesmo a própria linguagem, com que codificamos as coisas e interpretamos o mundo em que vivemos, é feita de jogos de palavras, a metáfora. Desde os povos primitivos, passando pelas civilizações grega e chinesa, mitificamos o mundo através de jogos e regras lúdicas, para melhor o entendermos. Podemos não concordar pontualmente com algumas ideias do autor, mas entramos em seu jogo e, sim, acabamos por compreender que nossa civilização é construída em torno de comportamentos agônicos que estão por trás da maioria de nossos elementos culturais, desde um vetusto tribunal de justiça até a maioria de nossas manifestações artísticas, como a música ou a poesia, ou seja, subjaz sempre a ludicidade, o jogo, el juego, the play...


sábado, 17 de abril de 2021

Éramos seis, Maria José Dupré

 

Éramos seis, Maria José Dupré


Aproveitei que será roteirizado para a próxima nove das seis, da Globo, para ler esse livro para o qual, confesso, sempre torci um pouco o nariz, na minha posição de estudante de letras e, depois, de professor de português. Mas, na verdade, faltou oportunidade para lê-lo. Então, vamos lá, falar um pouco sobre ele. Sem (muitos) preconceitos. Inevitável relacioná-lo, por alguma semelhança de tema e de localidade, com outro romance: AMAR, VERBO INTRANSITIVO, de Mário de Andrade. Ambos tratam de famílias paulistanas do início do século passado, sendo a história de Mário passada numa mansão da Avenida Higienópolis e a de Maria José, num sobrado simples da Avenida Angélica, ambas avenidas que se tornaram icônicas da burguesia e hoje são apenas grandes corredores comerciais. Terminam aí as coincidências. Mário escreveu seu romance em 1923, mais ou menos. Já a autora de ÉRAMOS SEIS publicou-o em 1943 e sua história cobre a saga de uma família pobre de São Paulo durante mais ou menos 30 anos, de 1915 até 1942. O motivo pelo qual citei Mário de Andrade é que sua literatura tem a inquietação do modernismo, traz ou busca fórmulas novas de estrutura narrativa, linguagem renovada e uma visão crítica da burguesia paulistana. Já o livro de 1943 tem todo o ranço narrativo do romance do século XIX, ou seja, uma estrutura convencional, sem nenhum vestígio de renovação ou inquietação estilística. Por que, no entanto, fez e faz ainda tanto sucesso? Embora não tenha uma visão crítica e seja, até mesmo, conservadora em suas ideias políticas e sociais, há, sim, uma novidade em ÉRAMOS SEIS: a visibilidade da classe menos favorecida. Embora com ideais burgueses de ascensão social, os seis membros da família da narradora são pobres e têm poucas perspectivas de melhoria de vida, a não ser através do trabalho quase escravo, fazendo encomendas de doces e salgados para as famílias ricas, trabalhando em escritórios ou oficinas, estudando quando possível e, principalmente, sacrificando os sonhos de melhoria de vida pela sobrevivência. O sofrimento, parece dizer a autora, tempera a vida e faz parte dela. Conformemo-nos, portanto. E esse conformismo, temperado pela dor e por aquilo que hoje chamaríamos de “síndrome do ninho vazio” chega-nos através de uma narrativa fluente e até mesmo sincera. Ainda que as personagens não tenham cores profundas de psicologia e motivações, sua história comove e traz lágrimas aos olhos dos mais incautos, além de nos apresentar um retrato vivo do que é a luta pela sobrevivência numa cidade como São Paulo, na primeira metade do século XX. Não é, positivamente, um grande livro, mas agrada, por essa sinceridade. E apesar do conformismo.


quinta-feira, 15 de abril de 2021

A morte de Artemio Cruz, Carlos Fuentes

A morte de Artemio Cruz, Carlos Fuentes



Artemio Cruz está morrendo. Artemio Cruz não quer morrer. No leito do hospital, parentes, médicos e enfermeiras revezam-se em seu campo de pouca visão e ainda menos lucidez para o presente. Mas seu cérebro fervilha de lembranças e, para driblar a dor e a rápida degradação física, Artemio Cruz reconstitui sua vida, desde o início do século XX, uma vida que se confunde com a própria história do México nesses mais de setenta anos. A pobreza, a revolução, as lutas armadas, as traições e a ascensão política e econômica, as mulheres e as amantes, os filhos, o império jornalístico construído à custa de sua capacidade de amoldar-se aos tempos e aos poderosos do momento, o poder, tudo isso enquanto suas entranhas se revolvem e se revoltam, a despeito dos médicos. Artemio Cruz não quer morrer. Artemio Cruz está morrendo. Uma narrativa barroca e entrançada como os cipoais das florestas tropicais, a obra mais significativa do autor. Um grande romance da latinidade.


 

terça-feira, 13 de abril de 2021

A partitura do adeus, Pascal Mercier

 A partitura do adeus, Pascal Mercier



Desse autor, li e reli TREM NOTURNO PARA LISBOA. Uma obra prima. E aí começam os problemas. Quando se lê o melhor livro de um autor, os demais desagradam-nos, decepcionam-nos. Felizmente, não foi o que aconteceu. A PARTITURA DO ADEUS, embora não esteja no mesmo nível, é um grande romance. Num estilo fragmentado, caleidoscópico, narra a complexa relação de uma garota, Lea van Vliet e seu pai. Ele, um professor, pesquisador e enxadrista; ela, uma grande violonista. Teve a epifania de sua vocação aos oito anos, ao ouvir uma musicista tocar numa estação do metrô e se apaixonou pelo violino. Torna-se um prodígio no instrumento que é, ao mesmo tempo, o seu grande prazer e o impulsionador de seu temperamento complexo, explosivo, além de outras complicações provocadas pelo seu exagerado amor ao instrumento. A história tem vários focos narrativos e é contada por van Vliet a seu amigo, durante uma louca viagem da França até a Suíça, num processo de autoconhecimento e de autoflagelação de um pai que fez o possível e o impossível por amor à filha, sem, contudo, evitar o trágico destino de ambos. Realmente o escritor suíço é um dos grandes escritores de nosso tempo.


domingo, 11 de abril de 2021

A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne



A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne



Década de 40 do século XVII. Boston era ainda uma vila rude de puritanos caçadores de índios. Hester Prynne é condenada a levar no peito a marca de seu opróbrio: a letra A bordada em vermelho. Tivera um romance, durante a longa ausência de seu marido, com um membro da comunidade e dele tivera uma filha, Pearl. Para proteger o anonimato desse homem, sujeita-se à prisão e, depois, a uma vida isolada e de privações, para criar a menina. Sua resistência, sua lealdade e seu enfrentamento de todas as dificuldades e preconceitos daquela sociedade que não lhe perdoa o “pecado” torna-a, na ficção, precursora das lutas feministas dos séculos XIX e XX. Uma história surpreendente, de tenacidade, num drama que nos prende da primeira à última página. E o livro tem, ainda, como uma espécie de bônus, o longo prefácio em que o autor expõe sua experiência como chefe da alfândega de Salém, numa crítica mordaz ao funcionalismo decrépito dessa repartição pública já decadente, no século XIX. Através desse texto, o autor tem ainda a pretensão de “explicar” a origem da história da letra escarlate, encontrada entre papéis velhos amontoados nos salões da alfândega, dando a ele uma espécie de chancela de historicidade. De qualquer forma, um livro impressionante, de um grande autor. Imperdível.


quinta-feira, 8 de abril de 2021

24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, Jonathan Crary

 

24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, Jonathan Crary


Trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana, ou, pelo menos, estar alerta o tempo todo, produzindo. Esse o ideal do liberalismo capitalista radical. Por isso, as tentativas de sequestrar o sono, como descobrir drogas que permitam aos soldados permanecerem alerta por tempos os mais longos possíveis; ou inventar engenhocas que iluminem do espaço grandes áreas durante o período noturno. No entanto, o sono, o momento mais íntimo do ser humano, parece resistir. E essa resistência é o que o autor sugere que seja o último baluarte contra a total escravização do ser humano ao sistema opressor que se consolida pouco a pouco, através de meios cada vez mais sofisticados de controle das mentes e dos corpos, para um novo mundo muito além de nossa imaginação, ou da imaginação da ficção científica. Um livro para ler, reler e pensar e repensar sobre o que queremos para nós, num futuro que bate à nossa porta.


sábado, 3 de abril de 2021

Os cus de judas, António Lobo Antunes



Os cus de judas, António Lobo Antunes



Era estudante de Letras da USP, quando fui atraído por uma palestra de um escritor português, Branquinho da Fonseca. Quando saí da tal palestra, não me lembrava de nada do que dissera o escritor: ficara embalado em suas palavras, em sua prosódia, no ritmo de sua fala e perdera o conteúdo. Sempre fui fascinado pelo ritmo da fala e da escrita lusitana. Assim, quando li as primeiras páginas de Lobo Antunes, nada entendi, novamente o fascínio do ritmo, das palavras, nesse autor ainda mais radical na estrutura das frases, no uso de um vocabulário desconhecido para nós, brasileiros, na forma de estruturar o texto. Enfim, deixei para outro momento. E esse momento chegou: depois de ler e reler as primeiras páginas e acostumar-me com a linguagem, o romance abriu-se para mim e desvendou um mundo absurdo e ao mesmo tempo realista. Misturando passado e presente, memórias e confidências, guerra – a famigerada guerra de libertação de Angola, com todas as suas mazelas – e angústias pessoais, o narrador, o médico que revela a uma amiga, durante uma noite apenas, seu desespero e seu desencanto com a vida, com o terrível regime salazarista e, principalmente, sua quase apatia diante do terrível sofrimento provocado pelos donos da guerra aos africanos e aos próprios portugueses, de seus gabinetes distantes. Corpos mutilados misturam-se às suas memórias afetivas e eróticas, a seus delírios, numa linguagem ao mesmo tempo lírica e cruel, que nos faz estar diante de um dos grandes livros já escritos no lusitano idioma, a nossa “flor do Lácio”, às vezes tão maltratada. Senti, mais uma vez, o orgulho de concordar, ao ler esse livro, que realmente “minha pátria é a língua portuguesa”.